Artigo Revisado por pares

Cadernos II: As águas livres by Teolinda Gersão

2015; American Association of Teachers of Spanish and Portuguese; Volume: 98; Issue: 2 Linguagem: Português

10.1353/hpn.2015.0043

ISSN

2153-6414

Autores

Rogério Miguel Puga,

Tópico(s)

Literature, Culture, and Criticism

Resumo

Reviewed by: Cadernos II: As águas livres by Teolinda Gersão Rogerio Miguel Puga Gersão, Teolinda. Cadernos II: As águas livres. Lisbon: Sextante, 2013. Pp. 167. ISBN 978-9-89676-078-6. Cadernos II: As águas livres, de Teolinda Gersão, dá continuidade aos pensamentos, fragmentos partilhados no primeiro volume dos Cadernos (Os guarda-chuvas cintilantes 1984), que partilha características com o romance-diário e recebe implicitamente o título Cadernos I. A narradora-escritora desenrola a escrita-novelo e formas de grafar pensamentos que captam nuances (sempre soltas) da natureza humana, cuja determinação e escravização permite construir monumentos que transportam fluxos cronotópicos de águas-livres até e sobre Lisboa. O título da obra remete assim também para a liberdade das águas enquanto metáfora (natural) para uma das mais universais demandas do ser humano: ser livre (do consumismo, por exemplo), sobretudo no que diz respeito àqueles que são, há séculos, iludidos e convencidos que o são. A escrita-leitura é elaborada com base no exercício da metaficção e consequentemente da autoreflexividade, pois o texto em construção tem consciência de o ser e auto-comenta-se enquanto tal. As duas epígrafes da obra funcionam como chaves interpretativas, remetendo a de Vergílio Ferreira para a língua (portuguesa)-mar, ou seja, para as águas livres como fluxo de escrita, e a segunda, da autoria de Espinosa, para o fenómeno da percepção da realidade (individual), chamadas de atenção que estabelecem um contrato de leitura que poderá guiar [End Page 378] a interpretação do Caderno. A tarefa interpretativa é adensada pelos referidos apartes metaficcionais, ou seja, pelo registo de “notas … soltas” (7) que permitem elaborar um quase anti-diário com base em divagações, sonhos e teorizações em torno da vida, da viagem e da literatura lida e vivida, do caminho sem fim do ser humano, como esclarece a autora no prefácio. Se os pensamentos dão lugar a livros, os livros darão lugar a pensamentos, como se de uma tarefa sísifa se tratasse. O binómio página vazia-cheia é, aliás, uma preocupação constante da cadernista, pois a escrita funciona como evasão comparada a um jogo de cartas cujas regras são sempre desconhecidas. Os parágrafos metaficcionais são intercalados quer com flashes visuais, olfactivos e sonoros de Lisboa, Sintra ou São Paulo e até de universos surreais e oníricos (que questionam a relação entre realidade e imaginação), quer com diálogos intertextuais com as obras-pensamentos e os selves de Pessoa, Freud, Jung, Jean-Paul Sarte, ou melhor Jean-Sol Partre (27), Kierkegaard e Wittgenstein, bem como com a tradição oral africana, que antecede a chamada filosofia erudita. O texto palimpséstico é construído por camadas—de metaficção, reflexão, divagação e descrição—notas soltas e livres sobre a vida e a natureza humanas, da qual a escrita-leitura, também ela work-in-progress, faz parte. Ao longo do texto interligam-se eco-paisagens de poluição visual e marítima (destroços de embarcações), sons típicos da capital portuguesa, reflexões irónicas sobre questões sociais e políticas portuguesas (subsídios a fundo perdido sem fundo), o impressionante credo-oração que maldiz o consumismo cego e desenfreado (62) e a metáfora do mundo enquanto matadouro dos mais fracos (148), temáticas que auto-caracterizam a narradora (que partilha pensamentos que talvez não caibam em romances) como uma observadora crítica do mundo circundante. O acto de olhar é comparado ao de filmar, recordando que o impulso artístico caracteriza a natureza humana, e que tudo é passível de ser narrado; trata-se, portanto, do mundo-como-espectáculo a ser narrado através de fluxos como os de água, de escrita e de pensamento, nos quais a narradora submerge, como informa a epígrafe que cita Vergílio Ferreira. O título da obra revela assim a natureza livre da escrita e o espanto sentido pela escritora como se cada vez que escreve fosse a primeira, talvez...

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