Artigo Acesso aberto Revisado por pares

Testes ABC: proposta de governo de uma população problemática

2007; Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional; Volume: 11; Issue: 1 Linguagem: Português

10.1590/s1413-85572007000100016

ISSN

2175-3539

Autores

Ana Laura Godinho Lima,

Tópico(s)

Gender, Sexuality, and Education

Resumo

Neste texto, examina-se a criacao do objeto “maturidade para aprender a ler e a escrever” e o estabelecimento de suas relacoes com outros objetos: idade cronologica, idade mental, reprovacao escolar, subnutricao e auto-estima, entre outros, tais como configurados por Lourenco Filho (1974) no livro Testes ABC para verificacao da maturidade necessaria a aprendizagem da leitura e da escrita1. O objetivo e verificar como essas categorias foram mobilizadas na formulacao dos Testes ABC, uma estrategia de governo pensada para resolver o problema especifico de uma populacao de alunos e avaliar o desempenho dos professores dessas criancas. Alem disso, o mesmo recurso foi considerado recomendavel para o diagnostico inicial da “crianca-problema” no espaco escolar. A analise baseia-se nos escritos de Foucault (1979/ 1996, 1988/1999) sobre a governamentalidade e a biopolitica. Nessa perspectiva, o governo e considerado como sendo a “conduta da conduta”, ou como “uma correta disposicao das coisas de que se assume o encargo para conduzi-las a um fim conveniente” (Guillaume de La Perriere apud Foucault, 1996; 282). Essa maneira de entender o governo tem diversas implicacoes. Em primeiro lugar, significa destituir o Estado de um papel central no exercicio do poder. Em segundo lugar, embora tenham como principio geral dirigir o comportamento de outros, os objetivos do governo nao sao sempre os mesmos. Da mesma maneira como ha multiplos governos, ha multiplos objetivos. Em terceiro lugar, se ha finalidades especificas para dispor as coisas e as pessoas de maneira conveniente, e preciso adquirir conhecimentos sobre elas. O exercicio do poder requer, portanto, formas de saber. Rose (1999) entende que o conceito de governamentalidade pode delinear um campo onde localizar todos os estudos sobre as operacoes modernas de saber/poder, dentre os quais o primeiro volume da obra Historia da Sexualidade (Foucault, 1988/1999) constitui um caso exemplar. Nesse caso, trata-se das tecnologias de biopolitica direcionadas para uma unidade especifica do governo, a “populacao”. O poder sobre a vida concretizou-se ao longo de dois polos: em primeiro lugar, o investimento sobre o corpo dos individuos, a partir da difusao das tecnicas disciplinares por todo o corpo social, processo iniciado no seculo XVII. Mediante o emprego das disciplinas, tratou-se simultaneamente de ampliar as forcas e a sujeicao do homem-maquina, mediante um controle minucioso exercido sobre cada parte do seu corpo (Foucault, 1988/1999). Em segundo lugar, a partir de meados do seculo XVIII, o governo dedicou-se a conhecer e a intervir nos processos biologicos da populacao: as taxas de natalidade e mortalidade, a saude e as doencas, a duracao da vida humana e os fatores que os influenciam passaram a ser estudados e administrados pela bio-politica. Pode-se considerar que os testes ABC funcionaram como um recurso de bio-politica na medida em que seu emprego nas escolas primarias paulistanas no inicio da decada de 1930 buscou produzir conhecimentos sobre a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores para favorecer a organizacao do ensino e simultaneamente atender ao interesse da administracao escolar de tornar mais eficiente o sistema e reduzir os gastos com a reprovacao escolar. Conforme ja se explicitou, a bio-politica consiste numa forma de poder que se baseia em conhecimentos sobre a vida dos individuos e as caracteristicas das populacoes com o objetivo de preservar e promover as condicoes de vida desses mesmos individuos, na medida em que isso seja considerado importante para o proprio Estado. Assim como os outros testes produzidos pela psicologia experimental nas primeiras decadas do seculo XX, os testes ABC tambem podem ser considerados como um recurso da biopolitica porque produziram conhecimento sobre um aspecto da vida dos alunos – sua maturidade para o aprendizado da leitura e da escrita. E foi esse conhe-

Referência(s)