
A gaveta da memória
2008; UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS; Volume: 19; Issue: 1 Linguagem: Português
10.1590/s0103-73072008000100010
ISSN1980-6248
Autores Tópico(s)Cultural, Media, and Literary Studies
ResumoTive a sorte ou o azar de ter um pai fotografo. Desde sempre, a caixa defotografias trazia o rosto de todos os parentes, vivos e mortos, bem como suascasas, cachorros, automoveis, mesas de aniversario, lavouras, maquinas e tratores,formaturas, casamentos, desfiles. Depois de algum tempo, como nao havianomes nas fotos, alguns rostos se confundiram, bem como as historias de vidados mais distantes. Minha infância, por conta da caixa, e composta de lembrancasexcessivas, pormenores que nunca poderia ter guardado, se nao fosse a visitacaoconstante das fotografias. Um livro de figuras que lia quando pequeno persistiana memoria com nitidez. A pagina na qual os porquinhos dividiam a comidacom outros animais era predominantemente azul, e o sofa no qual eu medebrucava sobre os cotovelos tinha um delicioso tom de rosa. A foto da epocaera pbchegava-se a ele por uma escada que saia da varanda traseira; tanto a escadaquanto o terraco tinham, como corrimao e parapeito, armacoes de canogalvanizado pintadas de verde-escuro; no centro do terraco erguiam-se duascaixas-d’agua, conectadas entre si. Durante os anos em que moramos ali, amenor dessas caixas guardou um tesouro, que eu chamava de «os vidros dascores». Eram muitos pequenos vidros de penicilina, dotados de tampa hermeticade borracha marrom, cheios de po de giz escolar, tingido com as mais variadassubstâncias: tintas de todas as canetas-tinteiro, oleo de cozinha (que dava ao poum tom amarelado e doce), azul de metileno, mercurio-cromo, iodo, mertiolato,calda de cereja, licor de menta, gema de ovo, groselha e os grafites moidos deuma caixa de vinte e quatro lapis coloridos. Os vidrinhos lotavam o fundo da
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