Artigo Revisado por pares

Estado, capital cafeeiro e crise política na década de 1920 em São Paulo, Brasil

2000; Duke University Press; Volume: 80; Issue: 2 Linguagem: Português

10.1215/00182168-80-2-299

ISSN

1527-1900

Autores

Renato Perissinotto,

Tópico(s)

Urban Development and Societal Issues

Resumo

Opresente artigo pretende analisar aquilo que poderíamos chamar de o “paradoxo da década de 1920”. Durante esses anos, a economia exportadora cafeeira encontrava-se no seu auge. A política de defesa permanente do café, iniciada em 1924, propiciou a elevação dos preços a níveis que há muito não se via.1 No entanto, os preços altos atingidos pelo principal produto de exportação brasileiro, graças a uma política estatal, não vinham acompanhados de tranqüilidade política. Como se sabe, a década de 1920 foi um dos períodos mais politicamente conturbados da história brasileira. O descontentamento político, contudo, não atingia apenas os setores mais radicais das classes populares (classe operária, as várias revoltas “tenentistas”), como normalmente se pensa. Não se limitava também aos setores dissidentes das “oligarquias regionais” (mineira, gaúcha, paraibana), que, no final da década, estariam à frente da Revolução de 1930. Surpreendentemente, ao lado dessas forças crescentemente oposicionistas, postavase grande parte do mais forte setor da classe dominante brasileira, isto é, aquele ligado, ao mesmo tempo, à produção e exportação de café e que chamaremos aqui de capital cafeeiro.2Se acompanharmos de perto o desenrolar histórico da década de 1920, veremos que os mais importantes membros do capital cafeeiro vinham assumindo crescentemente uma atitude crítica e oposicionista com relação ao partido governante, o Partido Republicano Paulista (PRP). Num primeiro momento, fez isso atuando sobretudo no âmbito de suas associações de classe— em especial a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Liga Agrícola Brasileira (LAB)—e num segundo momento, organizando um partido político de oposição, o Partido Democrático (PD), que se tornou uma ameaça concreta ao predomínio do PRP, até então absolutamente soberano na cena política paulista.3Este artigo pretende explicar, portanto, essa situação aparentemente paradoxal: como entender que a classe que objetivamente mais se beneficiava dos altos preços do café viesse a adotar uma postura crítica perante o Partido que promovia a prosperidade da economia exportadora através de políticas públicas contundentes, como era o caso da defesa permanente do café?Pensamos que as teses tradicionais sobre o período em questão, que atribuem ao setor cafeeiro um domínio político inconteste, não podem explicar esse “paradoxo”. Esses trabalhos geralmente apoiamse na idéia de que os “cafeicultores” controlavam diretamente o aparelho estatal e, por isso, colo-cavam-no a seu serviço.4 Dessa forma, fica difícil para essas interpretações, se não impossível, incorporar às suas análises o conflito entre o Estado e os que supostamente o controlavam de maneira instrumental. Ao nosso ver, o “paradoxo da década de 1920” no Brasil só poder ser plenamente compreendido se intro-duzirmos na análise uma outra variável, qual seja, o Estado. Defendemos a hipótese de que os altos decisores paulistas, ainda que majoritariamente recrutados na classe economicamente dominante, como mostrou Joseph Love,5enquanto agentes estatais6 eram obrigados a tratar de determinadas questões e tomar certas decisões que ultrapassavam de longe os estreitos horizontes de sua classe de origem. Cientes de que a efetividade de suas ações, a sua capacidade de tomar decisões e tratar das mais variadas questões (como saúde pública, forças repressivas, judiciários, obras públicas, educação, empréstimos externos), enfim, cientes de que a sua “autoridade política” dependia estreitamente dos recursos materiais gerados pela economia exportadora, os state managers procuraram estender os mecanismos oficiais de controle sobre a atividade cafeeira, com vistas a reduzir sensivelmente a sua instabilidade e, assim, estabilizar as rendas do Estado, profundamente dependentes do imposto de exportação sobre o café. Esse processo se deu através da burocratização e da centralização, conscientemente perseguidas, dos “aparelhos econômicos” do Estado, notadamente daqueles responsáveis pela gestão da economia cafeeira. O seu resultado foi o fortalecimento das prerrogativas da alta burocracia paulista em detrimento do poder de classe. Para ilustrar a afirmação acima, analisaremos a defesa permanente do café, a cargo de São Paulo desde fins de 1924. Veremos que, embora não estivesse no horizonte dos state managers paulistas superar os fundamentos da economia exportadora, eles perseguiram a sua reprodução a partir de uma perspectiva específica, propriamente estatal, que, portanto, se diferenciava daquela dos agentes econômicos que controlavam a atividade exportadora. Essa “defasagem de perspectivas” é, ao nosso ver, o elementochave para se explicar a situação aparentemente contraditória em que uma classe tem a sua atividade econômica potencializada pelas decisões do Estado, mas, ainda assim, entra em conflito com os agentes que controlam o aparelho estatal.De 1906, ano da primeira valorização, até 1924, quando se implementou a defesa permanente do café, é possível identificar um aprofundamento da burocratização e da centralização decisória da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, órgão responsável pela gestão da política econômica cafeeira. Apresentaremos neste item apenas os traços mais gerais que caracterizaram esse processo.7Durante a primeira valorização, o papel do Estado foi muito reduzido, limi-tando-se, de um lado, a ser um garantidor dos empréstimos estrangeiros que financiariam o esquema e, de outro, o coordenador do programa. Essa limi-tação da ação da burocracia paulista durante o primeiro plano valorizador se deve, ao nosso ver, a duas razões. Primeira, ao caráter pioneiro da operação. Segundo Taunay, por exemplo, naquele momento o Estado não tinha sequer um serviço adequado de estatística que pudesse viabilizar o esquema.8 Assim, a falta de instrumentos institucionais adequados impediu a burocracia paulista de ocupar uma posição mais ostensiva na condução daquela política. Ao lado disso, os setores privados, nacionais e estrangeiros, foram suficientemente fortes para reorientar a proposta de valorização inicialmente elaborada pelo famoso Convênio de Taubaté e que previa uma maior participação do Estado no controle da operação.9 O setor exportador, temeroso de que a intervenção oficial viesse interferir nas suas atividades mercantis, reagiu prontamente ao plano tal qual ele se apresentava nas propostas do Convênio. O nome de destaque nessa resistência foi, sem dúvida, o magnata do café Antônio Prado. Dono de um império mercantil, Prado temia, caso a intervenção oficial seguisse o que se vinha propondo, ser desalojado de suas atividades mais lucrativas, situadas exatamente no ramo de exportação de café. Segundo Verena Stolcke, Prado falava não apenas em seu próprio nome, mas no interesse de grande parte de seus companheiros de negócio.10 A resistência dos exportadores às propostas esboçadas no Convênio se deu através da Sociedade Paulista de Agricultura (SPA), à época a única associação de classe representativa dos grandes fazendeiros e exportadores de café. Foi, no final das contas, vitoriosa, pois o controle do plano recaiu de fato em mãos de comerciantes nacionais e estrangeiros, cabendo ao Estado apenas os custos do programa. Dessa forma, o plano real-mente efetivado foi algo bem mais próximo daquele proposto pelo grande fazendeiro e comissário Alexandre Siciliano, em 1902, em reunião da SPA.11No entanto, com o passar dos anos, ciente de que todo o funcionamento ordinário do aparelho estatal dependia estreitamente dos recursos materiais gerados pela exportação de café,12 a alta cúpula burocrática percebeu que não era possível deixar o movimento da economia cafeeira ao sabor dos humores do mercado, nem sob comando direto das vontades particulares dos agentes econômicos interessados e das associações que os representavam. Ainda que um pleno controle sobre o movimento da economia exportadora não fosse possível, já que, em última instância, ela estava subordinada à dinâmica do mercado mundial, mesmo assim a alta burocracia paulista buscou vários meios de atenuar a sua instabilidade e, portanto, a própria instabilidade do orçamento estatal. O primeiro passo nesse sentido foi a criação da Bolsa Oficial do Café.A Bolsa Oficial do Café foi a primeira grande intervenção do Estado paulista com o objetivo de regular mais ostensivamente o comércio do produto. Segundo Love e Topik, a Bolsa permitiu ao governo do estado regular o mercado, tornando oficiais as operações com o café, divulgou os dados sobre as cotações e sobre os negócios realizados, garantiu aos importadores estrangeiros a verificação da origem, da qualidade e do tipo do café despachado e, como conseqüência disso tudo, contribuiu para facilitar o recolhimento do imposto de exportação, base da receita estadual, uma vez que os negócios realizados seriam, de agora em diante, públicos e vigiados pelo governo através da nova instituição.13Criada pela lei 1.416, de 14 de julho de 1914,14 embora definitivamente instalada apenas em 02 de maio de 1917, a função principal da Bolsa era funcionar como um “freio regulador” dos negócios a termo, no que parece ter sido razoavelmente eficaz, como podemos depreender das seguintes palavras de Augusto Ramos: “atualmente, com raras exceções, quase todos os negócios de café são regularizados por esse instituto [a Bolsa], não só nas vendas a termo e diretas, como também na entrega efetiva da mercadoria, cujas classificações são feitas pelos peritos oficiais, conforme cláusulas existentes nos contratos de compra e venda”. Ainda segundo este autor, a Bolsa deveria garantir a efetividade das operações a termo e, o mais importante para o governo, atenuar o aspecto especulativo desse tipo de negócio. O mercado a termo, que consistia em entregas futuras de café, sempre fora passível de especulação através de operações com café fictício, cujo objetivo era a baixa do preço, com evidentes conseqüências para a receita do Estado. A Bolsa deveria ter, ainda, o importante papel de fixar as cotações no termo e no disponível, até então definidas fora de Santos com base nos patamares fixados pela Bolsa de Nova Iorque para o tipo 4.15 Para o deputado governista Antônio Lobo, a intervenção justificavase, pois, “se é verdade que o comércio deve ser livre, todas as liberdades têm, entretanto, um limite intransponível—os direitos e interesses alheios, e sobre-tudo o interesse geral da coletividade. A liberdade comercial dos que pretendem transformar o nosso mercado de café em casa de jogo ofende profundamente interesses fundamentais da Fazenda pública e privada. Ao Estado assiste portanto o incontestável direito de regularizar essa situação”.16Não há dúvida, porém, que foi através da defesa permanente do café que o Estado se fez mais ostensivamente presente no controle da economia cafeeira. Desde a sua transferência para o governo do estado de São Paulo, todas as peças legislativas produzidas pelo partido situacionista buscaram retirar qualquer poder de influência das associações de classe representativas dos interesses exportadores sobre a instituição que comandaria a política cafeeira, qual seja, o Instituto do Café do Estado de São Paulo (ICESP). A princípio, o Instituto fora pensado como um órgão submetido ao Poder Executivo, que, por sua vez, teria a sua capacidade de decisão contrabalançada por um “Conselho Diretor”. Este último seria um órgão colegiado que funcionaria como uma espécie de “legislativo”, uma caixa de ressonância dos interesses de classe no interior do Instituto. No entanto, toda a ação da alta burocracia paulista foi no sentido de retirar poder desse órgão e impedir qualquer forma de indicação dos seus membros por parte das associações de classe.17 A justificativa, amplamente utilizada, era a de que o assunto em questão—a economia cafeeira—era de interesse público e, por isso, não podia ficar sujeito aos particularismos de classe. Vejamos, a seguir, como as associações de classe reagiram a essa “expropriação” política feita pela alta burocracia.Antes da implementação da defesa permanente do café, as associações de classe, especialmente a SRB18 e a LAB,19 vinham promovendo amplo debate sobre a forma que a política em questão deveria assumir e, sobretudo, como deveria se organizar a instituição que seria responsável pela sua condução. Apesar da diversidade de propostas, podemos afirmar com segurança que todas elas tinham um ponto em comum: a instituição em questão deveria ser um “órgão de classe”.20 Para as associações, os produtores e exportadores de café deveriam controlar totalmente a organização, que, assim, deveria ser completamente autônoma em relação ao governo. Nada mais justo que assim fosse, pois, segundo os dirigentes das sociedades citadas acima, a política de defesa seria financiada em grande parte, e de fato o foi, por recursos retirados aos exportadores, através da cobrança da taxa de um mil réisouro sobre cada saca de café que transitasse pelas vias férreas do estado.21Quando ficou claro que a defesa seria transferida para São Paulo, iniciaram-se as tentativas, por parte do governo, de garantir o controle sobre a instituição que dirigiria a operação. No final de 1924, o deputado estadual governista Azevedo Júnior apresentou um projeto à Câmara dos Deputados, cujo principal objetivo era atribuir ao Secretário da Fazenda o controle total sobre a defesa permanente do café.A LAB e a SRB, ainda que com ênfases diferentes, colocaram-se contra a proposta. Segundo um articulista de O Estado de São Paulo, “a opinião parec[ia] ser de que o Instituto de Defesa só deve ser uma instituição de classe, sem o caráter oficial que o projeto lhe dá”. O peso do oficialismo, ainda segundo o articulista, contrastava com as propostas de defesa feitas pelas associações, SRB em especial, que defendiam claramente a autonomia de classe no comando do Instituto.Em reunião de dois de dezembro, a Liga Agrícola Brasileira expressou sua oposição às intenções centralizadoras do governo. Alguns participantes aprovaram a parte técnica do projeto, mas viam nos limites à representação de classe, imposto pelo seu artigo 1°, o seu maior problema. Antônio de Queiroz Telles, por exemplo, ligado à tradicional família de produtores e exportadores de café, manifestou-se contrário ao caráter oficial que se pretendia dar ao Instituto. Para ele, o projeto apresentado à Câmara consagrava o monopólio do Estado sobre o comércio do café. Reiterava, em coro com seus companheiros, que o Instituto deveria ser, ao contrário, uma organização de classe.22 Segundo o mesmo artigo, em reunião de dois de dezembro do mesmo ano, também a SRB decidiu pela manutenção da autonomia da lavoura como parte essencial do projeto de criação do Instituto. De fato, parece ter sido essa a posição defendida pelos membros da Rural em reunião no dia três de dezembro de 1924.23 Nessa reunião percebe-se uma significativa unanimidade nas posições dos oradores (Henrique de Souza Queiroz, Paulo de Moraes Barros, entre outros), pois todos fizeram referências à necessidade de que a classe detivesse a maioria no Conselho e que a escolha de seus representantes fosse feita pelas associações.Em cinco de dezembro, os reclamantes reuniram-se com o deputado Azevedo Júnior para discutir as possíveis alterações no seu projeto. Em nome das entidades de classe, o fazendeiro e exportador Sílvio Álvares Penteado propôs que o Conselho Diretor fosse formado por uma diretoria composta de sete membros, quatro dos quais seriam representantes das associações. No entanto, informa o jornal, o governo rejeitou a idéia e pronunciou-se favorável ao Conselho composto por cinco membros, tal qual previsto no projeto original. Em oito de dezembro, as associações reunidas resignaram-se à posição oficial, desde que dos cinco membros, três representantes fossem indicados diretamente por elas. Aventou-se a possibilidade de, nesse caso, o comércio comissário de Santos não ter representante algum no Instituto.24A pressão da SRB e da LAB parece ter tido, naquela ocasião, algum resultado. Em dez de dezembro de 1924, na 53ª sessão ordinária, o projeto entrou em terceira discussão na Câmara dos Deputados. Azevedo Júnior, depois de conferenciar com a Comissão criada pelas associações e com o auxílio do então deputado Bento de Abreu Sampaio Vidal, apresentou as emendas ao projeto. Segundo o próprio deputado, a mais importante delas referia-se ao artigo primeiro, que tratava da organização do Conselho. A emenda fez-se neces-sária, segundo ele, porque havia surgido no espírito dos representantes da lavoura cafeeira a idéia de fundação de um banco, idéia esta que se concretizou na lei 2.004, de 19 de dezembro, dispensando, assim, a presença de um nome no Conselho ligado a assuntos bancários (ver nota 22). Além disso, mereceu reparo, continuava Azevedo Júnior, o parágrafo único do citado artigo, determinando que as resoluções do Conselho pudessem ser vetadas pelo presidente do Instituto, isto é, o Secretário da Fazenda, o que viria anular as delib-erações dos seus demais membros (ver nota 22). Para superar esses problemas propôs-se: 1) que dos três membros do Conselho, dois fossem indicados pela lavoura (e não pela LAB e pela SRB diretamente) por meio de eleições e um pela ACS; 2) que ao veto do Secretário da Fazenda haveria recurso para o Presidente do estado e que 3) a aplicação do fundo de defesa permanente fosse definida a juízo do Conselho (artigo 4°, § único) e não mais do Secretário da Fazenda, como no projeto original.25Como se percebe, no projeto original de Azevedo Júnior o controle da defesa permanente do café seria, desde logo, depositado totalmente em mãos oficiais. Cientes de que isso implicava em restringir a sua influência na condução dos rumos daquela política, as associações de classe pressionaram pela alteração da proposta ali contida, com vistas a transformar o Conselho do Instituto num órgão corporativo em que a representação dos interesses de classe fosse assegurada. No entanto, parece que as emendas do governista Azevedo Júnior não contentaram plenamente as associações, que, através de uma comis-são conjunta, perseguiram o controle total do Instituto, procurando aprovar a proposta de um Conselho composto por sete membros, com cinco deles indicados por elas. Estavam conscientes que, mesmo com as alterações feitas pelo deputado, o governo ainda teria maioria no Conselho Diretor do ICESP. Ainda que dois representantes fossem diretamente eleitos pelas associações de classe (o que não ocorreu), o governo controlaria o Instituto através dos outros três componentes, que eram o Secretário da Fazenda, o Secretário da Agricultura e um outro indicado pela então governista ACS. Porém, a SRB e a LAB não lograram alterar o projeto para além do que foi descrito acima.26O projeto de Azevedo Júnior chegou ao Senado em onze de dezembro daquele ano. No dia treze, na 73ª sessão ordinária, iniciaram-se os protestos contra algumas de suas características claramente oficiais. Na 75ª sessão ordinária, em 16 de dezembro, o projeto Azevedo Júnior entrou em terceira discussão no Senado e Reinaldo Porchat apresentou nova emenda, agora relativa ao artigo 4°, que, no texto original, atribuía exclusividade à Secretaria da Fazenda na condução da defesa permanente do café. Segundo ele, a retirada do advérbio “exclusivamente” fazia-se necessária para manter a coesão do projeto, visto que outros artigos (como o 5° e o 7°) previam operações que correriam sob a responsabilidade de bancos e do Instituto, prevendo, pois, que este último poderia fazer operações de defesa por intermédio dos primeiros, deixando claro, assim, que ela não correria “exclusivamente” pela Secretaria da Fazenda. O senador governista Pádua de Salles respondeu que a Comissão de Fazenda não concordava com a emenda apresentada, pois “quando o projeto, no seu artigo 4°, diz que a defesa do café correrá exclusivamente pela Secretaria da Fazenda, fêlo no sentido de melhor garantir os interesses do Estado e do Instituto subordinado à ação deste”. Para ele, o advérbio em discussão referia-se sobretudo à primeira parte da organização do ICESP, qual seja, a regularização da entrada de café em Santos. Salles justificava ainda o uso do advérbio em função da absoluta necessidade de “unidade de ação” numa operação daquele porte, cuja administração não podia, por essa razão, estar a cargo ora do Instituto, ora do Secretário da Fazenda. As emendas acabaram sendo rejeitadas e o projeto foi aprovado também no Senado.27Em cinco de dezembro, ainda em 1924, o jornal governista Correio Paulistano, em artigo intitulado “A lavoura e o projeto de defesa do café”, justificava a posição do governo dizendo que o Instituto precisava estar vinculado ao governo, sobretudo quando necessitasse fazer operações de crédito no exterior, celebrar convênios e quando fosse necessário administrar a limitação das saídas do café de Santos. Dadas as exigências de seu funcionamento, que, como bem sabiam os homens do governo, transcendiam os interesses imediatos representados nas associações de classe, “pretender dar autonomia ao Instituto e a ela [à “lavoura”] subordinar o governo, logo se vê que é impossível, pois este faltaria, assim, aos indeclináveis deveres constitucionais que lhe foram atribuído […]. A organização do Instituto não pode fugir à lógica, à nossa tradição administrativa e às normas jurídicas”.28Logo após aprovado o projeto, foi publicado o regulamento do Instituto (decreto 3.802, de 14 de fevereiro de 1925). Para discutilo, realizou-se, na sede da LAB, uma reunião conjunta entre esta entidade, a Rural e a Sociedade Paulista. O encontro foi presidido por Henrique de Souza Queiroz, presidente da SRB, e teve como membros da mesa Arthur Diederichsen, diretor da SPA, Paulo de Moraes Barros, presidente da LAB, Conde Sílvio Álvares Penteado e Coronel Antônio Barbosa Ferraz Júnior, quase todos eles ligados ao capital cafeeiro. O objetivo principal da reunião era deliberar sobre a maneira pela qual dar-se-ia a representação no Conselho Diretor do Instituto e acerca do que rezava o novo regulamento a respeito do tema. Mais uma vez predominou a posição crítica em relação ao governo por parte dos principais líderes das associações de classe, que refutavam o avanço do controle oficial sobre a organização. Ainda em fevereiro de 1925, o governo, na pessoa de Mário Tavares, Secretário da Fazenda e presidente do Instituto, respondeu às objeções feitas pelas associações agrícolas e a ele apresentadas num memorial. À crítica de que o regulamento, mais uma vez, não atribuía àquelas associações o poder de indicar os dois representantes da lavoura, Tavares retrucou dizendo que “a impossibilidade da referência às sociedades agrícolas resultou da inconveniência de se vincular a organização do Instituto à existência de organizações particulares”. Ele contrastava, portanto, “organizações governamentais” e “sociedades agrícolas” como entidades submetidas a lógicas diferenciadas, isto é, de um lado, a lógica oficial, governamental ou “pública”, como será dito repetidamente, e, de outro, a lógica particular, privada, típica das associações da Capital. Para o governo, a própria forma de atuação do Instituto tornava impossível submetê-lo a entidades não-governamentais. Frente à neces-sidade de operações externas de crédito, convênios com estados, regularização de embarques de cafés, deslocamento do produto de armazéns de Nova Iorque, Havre e Hamburgo para os armazéns nacionais, frente a tudo isso, perguntava-se: “Qual entidade, fora do governo, capaz de manter o funciona-mento impecável desse aparelho regulador? Como poderiam as estradas de ferro movimentar-se de acordo com os desejos e as instituições de simples particulares?”29Superado esse problema, um outro surgiu. A definição de que os mandatos dos membros do primeiro Conselho Diretor do Instituto terminariam em trinta de junho de 1925 (artigo 49, § único do regulamento 3.802) colocou, quase de imediato, a questão da indicação, pela via eleitoral, dos nomes a ocuparem lugar no Conselho seguinte. Todo o problema, de agora em diante, era fazer com que o governo aceitasse os nomes indicados pelas associações de classe e os apresentasse à eleição.Por volta de maio de 1925, iniciaram-se as discussões em torno das novas eleições que poriam fim ao Conselho provisório criado pelo artigo 48 do decreto 3.802 de 14 de fevereiro daquele ano.30 Nesse processo, a LAB se colocou em oposição à governista SPA e à SRB, no que, aparentemente, seria um bom acordo entre esta última e o governo. No entanto, o governismo da SRB não durou muito mais que um ano. Em maio de 1926, Henrique de Souza Queiroz, um dos indicados no pleito, renunciava ao seu cargo em função de desavenças com o Secretário da Fazenda quanto à atuação do Instituto no mercado a termo. Impossibilitado de impor a sua política, e a da SRB, Souza Queiroz se viu forçado a renunciar.31O Correio Paulistano, como de praxe, assumiu a responsabilidade de defender o governo. Em sete de maio de 1926 publicou artigo intitulado “Como e por que o Sr. Henrique de Souza Queiroz divergiu do Conselho Diretor”. Ali informava que para o lugar do renunciante o governo havia indicado o nome de José Martiniano Rodrigues Alves. Para o periódico governista, a causa da renúncia residia principalmente no fato de Souza Queiroz desejar que a inter-venção do Instituto no mercado, quando se fizesse necessária, não se desse apenas nas compras de cafégrão, mas chegasse também às operações da Bolsa. “É uma concepção—dizia—que nada tem de extraordinária. Há até quem pense, segundo uma frase de gíria bolsista, que o ‘termo puxa o disponível’. Apenas essas arriscadas operações a termo, de pura especulação, lícitas para particulares que nelas empenham recursos próprios, são proibidas ao Instituto”. “Intervenção no mercado a termo”: este era, segundo o Correio Paulistano, o cavalo de batalha de Henrique de Souza Queiroz. O periódico insistia no caráter especulativo e inseguro daquelas operações, que eram, na verdade, uma aposta no preço futuro da mercadoria, podendo causar prejuízos aos “fundos públicos”, o que, de fato, acabou ocorrendo quando Souza Queiroz logrou impor seu ponto de vista. No entanto, nos termos da lei, esse tipo de operação era vedado ao Instituto.32 De acordo com o mesmo jornal, o Instituto só retirava do mercado café disponível, e somente quando necessário, adiantando dinheiro apenas sobre cafés armazenados. Fazendo isso, o seu patrimônio estava automaticamente cercado de todas as garantias, pois os seus valores estavam sempre representados em espécie, ou em café, que, no caso do Brasil, era sinônimo de ouro.33Como resultado do episódio narrado acima, a SRB viu-se derrotada na sua tentativa de ter alguma influência na condução da política cafeeira. A intenção de Henrique de Souza Queiroz de operar no mercado a termo foi barrada pela orientação governista dada ao Instituto, cujos objetivos não se adequavam aos interesses mercantis do grande exportador. A partir de então, a Rural retornará ao campo oposicionista para não mais sair. Segundo Procópio Ferraz, depois da renúncia, “as sociedades agrícolas passaram a ser gratuitamente hostilizadas”.34 O conflito entre, de um lado, governo e SPA e, de outro, LAB e SRB, assumirá, então, cores vivas com a nova eleição para o Conselho do Instituto, em junho de 1926.A reação do governo ao perigo que se anunciava, isto é, de derrota na escolha dos conselheiros do Instituto, deu-se em dois níveis: a fraude eleitoral, para garantir a vitória imediata nas eleições, e a restruturação do Instituto. Em editorial, a Revista da Sociedade Rural Brasileira dizia que “à vista das últimas ocorrências havidas entre as sociedades representativas da lavoura e o governo, razão há para se duvidar do resultado final, isto é, de que venha ela a condizer com os justos desejos dos lavradores”.35 Durante o processo eleitoral, até mesmo a censura foi utilizada. Em 29 de setembro de 1926, na 291ª reunião da Rural, o associado Arthur Guimarães, de Presidente Alves, enviou carta àquela Sociedade informando a existência de censura postal no interior do estado. Segundo o sócio, ele havia recebido, na ocasião das eleições, um envelope com o nome da SRB impresso, no qual havia um comunicado informando-lhe sobre os nomes escolhidos pela entidade para a representação no Conselho do Instituto. Neste envelope, ainda segundo o associado, havia sido colocado um papel em que se lia, com letras grandes, “aberto pela censura”.36Segundo informações veiculadas na imprensa em geral, à exceção do Correio Paulistano, o procedimento eleitoral foi altamente irregular. O governo, entretanto, simplesmente ignorou todas as evidências e deu como definitivo o resultado seguinte: José Martiniano Rodrigues Alves, 5.611 votos, Francisco Ferreira Ramos, 5.516 votos, Antônio Queiroz Telles, 1.770 votos e Antônio Manoel Alves de Lima, 1.756 votos, seguidos por outros nomes menos votados.37 Os dois primeiros, ligados ao governo, foram conduzidos ao Conselho Diretor do Instituto.A restruturação do Instituto, por sua vez, foi uma clara reação ao conflituoso processo eleitoral acima narrado. Ela permitiu ao governo consolidar o seu controle sobre a instituição, selando, assim, a sua vitória sobre as associações de classe. O primeiro momento dessa reação se deu através do decreto 4.067, de 30 de junho de 1926, que autorizava a prorrogação do mandato dos conselheiros (Francisco Ferreira Ramos, José Martiniano Rodrigues Alves e Azevedo Júnior), até o Legislativo pronunciar-se sobre as alterações a serem feitas na lei 2.004, de 19 de dezembro de 1924, que havia criado o ICESP na sua forma original, isto é, dotado de um Conselho Diretor. Ora, se através das eleições, ainda que fraudulentas, o governo havia garantido a recondução de Francisco Ferreira Ramos e Rodrigues Alves ao Conselho, tinha, contudo, perdido a disputa na ACS, única entidade com o direito de indicar diretamente um membro daquele órgão. Com o decreto 4.067 o governo anu

Referência(s)