Artigo Acesso aberto Revisado por pares

Obstáculos históricos à vida democrática em Portugal e no Brasil

2003; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO; Volume: 17; Issue: 47 Linguagem: Português

10.1590/s0103-40142003000100015

ISSN

1806-9592

Autores

Fábio Konder Comparato,

Tópico(s)

Social and Political Issues

Resumo

The conception of democracy, the historycal obstacles to the democracy life in Portugal and in Brazil, from the Classic Ancient History to the second middle of the century XIX, are questioned by criticai and reflexive way. Unitermos: democracia; obstaculos historicos; formacao de Portugal e do Brasil. Desde Antiguidade Classica e ate segunda metade do seculo XIX, democracia sempre foi tida, entre os pensadores politicos, como u m regime politico subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democratica, as mulheres, as criancas, os escravos, ja nao se submeteriam ninguem; nao haveria mais bons costumes, amor ordem, virtude, enfim. James Madison, por sua vez, sublinhou que democracia, por ele entendida como a sociedade consistente num pequeno numero de cidadaos, que se reunem e administram o diretamente incentivaria o espirito de faccao, pondo e m constante risco ordem social. N o mundo contemporâneo, contudo, o juizo de valor que se faz sobre democracia e exatamente o inverso. C o m raras excecoes, ja nenhum partido ou movimento politico ousa dizer-se antidemocratico. Todos, ao contrario, esforcam-se por se apresentar como os unicos verdadeiros defensores do governo do povo, pelo povo e em prol do povo 1. DeVesprit des lois, livro VIII, cap. 2. 2. TheFederalist,n. 10. 64 Fabio Konder Comparato Essa unanimidade atual, construida em torno do conceito de democracia, e evidentemente suspeita. Ela revela, sem sombra de duvida, uma formidavel confusao semântica, ao fazer do elogio universal do regime democratico u m simples chavao do jogo politico. O povo, que afinal, pelo proprio sentido etimologico, seria o principal beneficiario dessa forma de organizacao politica, parece ter serias dificuldades em entender, exatamente, o que esta por tras das palavras encantatorias da propaganda. N u m pesquisa realizada e m 1999, com mais de cinquenta mil pessoas e m sessenta paises, citada no Relatorio das Nacoes Unidas de 2002 sobre o Desenvolvimento Humano, apurou-se que apenas dez por cento dos interrogados reconheceram que o do seu pais obedecia vontade do povo. Ora, Portugal e Brasil, que sofreram durante o ultimo seculo regimes autoritarios e ditatoriais por dezenas de anos, tem hoje o seu Estado organizado, segundo o vigente padrao consensual do regime democratico: ambos contam com governantes eleitos pelo voto popular, em pleitos livres e multipartidarios, e ostentam uma separacao formal de Poderes. M s seria esta, efetivamente, percepcao que os nossos povos tem do regime politico e m vigor? Reconheceriam eles, contra maioria esmagadora dos consultados na pesquisa mencionada, que os seus respectivos governos cumprem, zelosamente, os ditames da vontade popular? A indagacao parece pertinente e importante, se se quiser sair do terreno pantanoso das ficcoes politicas. O que se pretende trazer aqui, neste breve excurso, nao e evidentemente uma resposta cabal pergunta, mas apenas alguns elementos de reflexao sobre materia. Comecemos, segundo boa logica, por precisar os conceitos. I Democracia e Feudalismo: o Conteudo Historico dos Conceitos Democracia: voltando as origens Um dos grandes principios metodologicos das ciencias humanas e o do carater historico dos conceitos. Nesse vasto campo do saber, os conceitos nao refletem, como e m materia de ciencias exatas, essencia abstrata e invariavel da realidade; eles exprimem antes, de modo sintetico, determinada experiencia historica. Temos, pois, que, para examinar o carater democratico ou nao da vida politica portuguesa e brasileira, e indispensavel coteja-la com o modelo de democracia criado originalmente e m determinado momento historico, e ao qual todos os desenvolvimentos ulteriores se referem. Esse modelo e, incontestavelmente, o regime ateniense de popular, que durou pouco mais de dois seculos (de 501 338 a. C ) . A classificacao dos regimes politicos, no pensamento grego classico, adotou desde cedo, como criterio de ordem, o numero de titulares da soberania ou poder politico supremo (kyrion). De acordo com esse criterio, reconheceu-se existencia 3. Human Development Report 2002 Deepeningdemocracy in afragmented world, Oxford Univcrsity

Referência(s)