Artigo Produção Nacional

Sobre a teoria da loucura no século XX

2006; Volume: 14; Issue: 2 Linguagem: Português

ISSN

2175-3652

Autores

Isaías Pessotti,

Tópico(s)

Youth, Drugs, and Violence

Resumo

Neste trabalho as expressoes “psicopatologia” e “teoria da loucura” sao usadas como equivalentes. Antes de apontar algumas contribuicoes teoricas importantes da psicopatologia do seculo XX, pretendo caracterizar em linhas gerais o enfoque teorico da loucura no seculo precedente. O seculo XIX foi a epoca de maior florescimento da teoria e da terapeutica da loucura. Ele comeca com o Traite MedicoPhilosophique de Pinel – uma verdadeira revolucao teorica e terapeutica. Apos a hegemonia secular de um organicismo hipotetico ou ate metafisico, Pinel e Esquirol apresentam uma nova concepcao sobre a natureza e a causa da loucura. Quanto a natureza, ela e, essencialmente, um desarranjo duradouro do discurso e dos atos, que nao se ajusta a realidade circunstante, mas corresponde a ideias erradas sobre os eventos fisicos ou sociais. Assim, a causa da loucura ja nao deve ser buscada em alguma presumida lesao estrutural ou funcional do encefalo, mas na experiencia do real. Essa experiencia e entendida em dois sentidos: como processo de elaboracao de ideias, a partir da percepcao sensorial, e como exposicao aos impactos afetivos da vida cotidiana, as paixoes. A loucura tem como causa erros no conhecimento e resulta da formacao de ideias erradas sobre as relacoes com as coisas ou com os outros. Com Pinel, a psiquiatria passa a ser, de um lado, a correcao de habitos, via correcao das ideias; de outro, a reeducacao afetiva, isto e, o controle (ate pedagogico) das paixoes. Sao estas as funcoes do “tratamento moral”, que e, com todas as letras, um metodo de modificacao do comportamento. (Se quiserem: uma terapia cognitivocomportamental). Esta psicoterapia reeducadora desapropriava um territorio secular da medicina, visto que todos os seus recursos terapeuticos pouco ou nada serviam para reeducar ideias e habitos e para coibir vicios afetivos e passionais. A medicina nao estava preparada para lidar com a loucura como uma doenca da mente ou da pessoa. Apesar do entusiasmo inicial, o “tratamento moral”, mal visto pela psiquiatria vigente e adulterado por aplicacoes inadequadas, durou poucas decadas e, desde a metade do seculo XIX, o velho organicismo recuperou sua hegemonia no pensamento e nas praticas da psiquiatria. Qualquer alusao a fenomenos psiquicos, a funcoes mentais e a qualquer enfoque psicologico era visto como especulacao – coisa de “medicos filosofos”. As anomalias do discurso ou do comportamento eram apenas evidencias de transtornos cerebrais. Assim, ao “tratamento moral” contrapos-se triunfante o “tratamento fisico”, destinado a provocar efeitos sobre o funcionamento do cerebro. A demorada observacao do comportamento dos pacientes foi substituida pelo exame clinico. E, em vez de buscar correlacoes entre a historia pessoal e a conduta anormal, passou-se a procurar, atraves da anatomia patologica, correlacoes entre os sintomas e as presumidas alteracoes no tecido cerebral. Na verdade o que se rejeitava era o papel causal da experiencia na producao da loucura. Visava-se a uma medicina “frenologica”, que lidasse com verdadeiros fatos cerebrais e nao com processos mentais. Dado que a investigacao direta dos processos cerebrais era praticamente impossivel, o exame dos sintomas observaveis ganhou importância essencial, pois eles eram as evidencias do disturbio cerebral essencial. Para um freniatra, qualquer componente pessoal ou subjetivo na loucura so tinha sentido como produto ou sintoma da doenca cerebral; e a praxis medica correta deveria seguir os mesmos cânones da neurologia. Assim, para o diagnostico importava determinar um agente causal, uma lesao orgânica especifica e uma forma clinica tipica que envolvia inicio, decurso e desfecho caracteristicos.

Referência(s)