Mediação narrativa no contexto judiciário atual
2016; Volume: 25; Issue: 55 Linguagem: Português
ISSN
2594-4363
Autores Tópico(s)Legal Issues in South Africa
ResumoAo ler o brilhante artigo “Mediacao Narrativa: uma abordagem diferenciada para a resolucao de conflitos” de Winslade e Monk da edicao 54 da Nova Perspectiva Sistemica, me senti convidada a refletir tanto sobre o contexto atual da mediacao no Brasil quanto sobre os cuidados que esse cenario inspira com relacao a mediacao de casais, com filhos, em processos de divorcio.A sociedade brasileira passa por um periodo de mudancas no entendimento sobre conflitos e suas possibilidades de (dis)solucao. Embora a mediacao ja fosse uma realidade em diversos contextos judicias e extrajudiciais, so em 2010 com a Resolucao 125/2010 do Conselho Nacional de Justica foi oficializada e incorporada ao judiciario como metodo pre-processual nos Centros Judiciarios de Solucao de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e em 2016 foi inserida no Novo Codigo de Processo Civil como parte dos procedimentos processuais.Ate entao, na sociedade brasileira moderna, a ideia de justica esteve atrelada de forma indistinta ao sistema judiciario e a obtencao de uma sentenca, ou seja, acesso a justica era sinonimo de acesso ao judiciario, que deveria culminar com uma sentenca justa, nos parâmetros da lei. A expectativa era de que a sentenca fixada heteronomamente pelo juiz colocasse fim a disputa. Na pratica, o que se observou foi que a sentenca encerrava o processo, mas a disputa entre as partes continuava. A reflexao e busca de solucoes para essa insatisfacao, somada a outros problemas de ordem estruturais, foram obrigando a sociedade a buscar outras formas de se compreender e fazer justica. As mudancas ocorridas nos ultimos seis anos, indicam que tem havido uma ressignificacao da justica como algo alem de uma sentenca, mais e mais a justica vem sendo vista como um valor e bem a ser construido e preservado nas relacoes, algo que as pessoas produzem quando criam entendimentos sobre suas diferencas, podendo negocia-las com respeito mutuo.O proposito me encanta e me enche de esperanca e desejo de contribuir. Mas nao podemos imaginar que uma mudanca paradigmatica como essa possa acontecer imediatamente, a partir de proposituras legais e normativas. Toda mudanca cultural requer tempo para que se torne um modo de pensar e fazer cotidiano, sem produzir estranhamentos. Certamente, comecar foi necessario, agora cabe ao conjunto da sociedade, o que inclui cada um de nos, a responsabilidade de experimentar, refletir, transformar.Ao mesmo tempo em que mudancas de significado ocorrem, ha expectativas de que velhos problemas se resolvam com a implantacao dos novos institutos, como mediacao e conciliacao. Isso se observa com maior nitidez em relacao a expectativa que se tem sobre tais institutos, visto que espera-se que oferecam solucoes rapida, traduziveis em acordos, sendo o numero de acordos firmados um criterio usado para a conferir a eficiencia do metodo.Foi imersa neste contexto, que ao ler o artigo que expoe os objetivos da mediacao narrativa e apresenta os recursos do metodo narrativo, nos convidando a pensar sobre o quanto as transformacoes das narrativas produzem mudancas cruciais na vida relacional das pessoas para muito alem do acordo, fiquei fazendo uma pergunta que sempre me acompanhou: a que mesmo estamos nos propondo quando atuamos como mediadores? Nossa intencao esta em produzir acordos ou em prioritariamente produzir novos modelos relacionais no qual o entendimento passa a ser possivel e desejado entre as pessoas?Essa questao se torna mais desafiadora nos casos de familias com criancas e adolescentes, onde as conversas de mediacao sao realizadas entre os pais, mas os mais afetados pela relacao que se produzir ali serao os filhos. Sera na vida dos filhos que recaira o impacto sobre a forma como cada um dos pais tece sua narrativa de vida familiar, divorcio, parentalidade, bem como suas descricoes de si mesmo e do outro e as expectativas futuras a partir destas historias.No caso dos conflitos familiares ja era de muito conhecido que a sentenca proferida pelo juiz, ainda que competentemente fundamentada nas leis e na jurisprudencia, nao colocava fim ao conflito. Ao contrario, o que se observava era que a busca pela sentenca favoravel a um dos lados (e a sentenca so pode ser favoravel a um dos lados), na medida em que exige que as pessoas entrem no jogo juridico de argumentacoes e provas, acirra o embate e a identificacao do outro como incapaz e inimigo. Observa-se que a demanda pode ser encerrada com a sentenca, mas o mesmo processo que resultou na sentenca, inadvertidamente cria as condicoes e fomenta os conflitos futuros.Entre os casais que se separam, narrativas que comecam com “o amor acabou, e melhor cada um seguir seu caminho, sem rancores”, na medida em que sao contadas e recontadas a partir da logica do litigio, pouco a pouco vao se tornando historias de culpa, vitima e algoz, tal qual num filme de ficcao onde os seres se transformam, o outro paulatinamente se transmuta. Aquele com quem ate recentemente era possivel conviver passa a ser descrito (e, a partir dai, visto e tratado) como violento(a), louco(a), pessimo(a) pai/mae, alguem cuja proximidade e um risco.As pessoas que buscam mediacao para resolver seus conflitos, quase sempre, nao desejam estar imersas em tais conflitos, menos ainda se sentirem presas e paralisadas por ele. Entao, o que faz com que pessoas que nao desejam o conflito o mantenham de forma tao eficaz? Suares (2010) compara as pessoas que se encontram em conflitos com o motorista que atola o carro. O motorista entra no atoleiro inadvertidamente, ao perceber que se “enroscou” comeca a tentar manobras ja conhecidas, que so vao piorando a situacao. Sao manobras legitimas que ja produziram resultados em outras situacoes, com outro tipo de solo, mas que para aquela situacao sao danosas. Quanto mais o motorista insiste, mais afunda. Muitas vezes, com os casais, coisa parecida vai acontecendo. Formas de falar/nao falar, brincar/nao brincar, fazer /nao fazer, que sempre deram “certo”, podem, conforme a situacao do “terreno” no qual se esta, produzir efeitos contrarios ao desejado. Justamente porque lhes parece que o que estao fazendo e o “natural”, continuam a fazer e cada vez se atolam mais no conflito sem se darem conta do porque.Atoleiros tambem podem ser construidos pelas historias que as pessoas vao repetindo para si mesmas e para os outros. Quando em um processo de separacao, as pessoas, por motivacoes diversas e, inclusive pela demanda judicial, destacam os momentos em que nao houve colaboracao ou confianca, recortam o que houve de pior na relacao e lancam toda luz para os momentos em que o outro mostrou o pior de si, a descricao que emerge (e se cristaliza) do outro vai se tornando o que pode haver de pior. Descricao essa que vai definindo nao so os rumos do processo judicial, mas tambem as formas de relacao possiveis de se ter (ou nao ter) com esse outro no futuro. As narrativas que sao contadas nos processos afetam, nao so a decisao do juiz mas, acima de tudo, as partes envolvidas no conflito. As pessoas se tornam refens das narrativas dolorosas que construiram.Quando pensamos que ha um casal conjugal em processo de divorcio, ou seja, de termino de um ciclo, mas ha tambem um casal parental construindo uma relacao futura para criacao dos filhos, portanto, de inicio de ciclo, a proposta da mediacao narrativa parece ser uma forma de ajudar nao so a dissolver os conflitos atuais, como criar condicoes para que no futuro as diferencas produzam propostas criativas e capazes de incluir o novo. A riqueza da mediacao narrativa e justamente a de oferecer recursos para a criacao de um espaco relacional onde a construcao de pais participativos e colaborativos se torna possivel. Me parece importante considerar que essa mudanca de narrativa e, portanto, das interacoes futuras, nao decorre de uma “boa vontade” inicial ou uma “bondade inerente aquela pessoa”, mas ao trabalho realizado pelo mediador narrativo que conduz a conversa de forma a identificar na narrativa de vida em comum episodios de cooperacao, respeito, colaboracao e apoio que ja tenham vivenciado, tornando possivel que estas descricoes componham a historia futura.Dentre os recursos que o mediador utiliza estao a escuta dupla e a contra historia. A escuta dupla e o processo pelo qual o mediador, alem de escutar a historia do conflito trazida pelos mediados, ouve a contra historia. Quando os mediados trazem a historia do conflito, oferecem muitos fatos que a corroboram e fortalecem. Contudo, tangenciando a historia narrada, pode-se identificar o que nao e colocado como figura, mas que aparece como fundo. Por exemplo, ao contarem a historia de conflito e desesperanca que os trouxeram para mediacao, e possivel perguntarmos se a vinda deles traduz uma esperanca de que as coisas mudem. Neste caso, a esperanca, negligenciada na historia inicial, aparece no contraste que o mediador nomeia na contra historia. A contra historia oferece, assim, uma narrativa preferivel que permite alternativas de confianca e colaboracao. Para que a contra historia passe a sustentar acoes, nao basta ser tecida, precisa ter sua trama fortalecida por experiencias passadas de sucesso e cooperacao.Concordando com os autores que a mediacao e um metodo conversacional que propicia aos mediados a oportunidade de retomarem o dialogo e juntos construirem ou recuperarem condicoes de colaborar na solucao de questoes atuais e futuras, nosso desafio com os casais parentais e ajuda-los a resgatar as experiencias de colaboracao e respeito que ja tenham vivido para construir narrativas atualizadas onde haja possibilidades de ajustes e acordos constantes. Sem uma nova narrativa que sustente uma relacao de confianca, os acordos nao ganham consistencia e firmeza para subsistirem aos desafios que a criacao conjunta dos filhos exigira do novo casal parental.
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