
De Paris a Spinoza
2016; Convergences Editorial; Volume: 13; Issue: 2 Linguagem: Português
10.33233/fb.v13i2.468
ISSN2526-9747
AutoresMarco Antonio Guimarães Da Silva,
Tópico(s)Literature, Culture, and Criticism
ResumoNunca fiz segredo da admiração que sinto pela cidade de Paris, seja pela sua arquitetura, seja pela sua cultura ou seja pelas diferentes matizes de luzes que a iluminam. Deixei isso claro nos dois primeiros romances que escrevi e o faço também no livro que escrevo a quatro mãos com Manuel Rui, escritor e poeta angolano, e que deverá ser lançado no final deste ano. Em parte, foram essas características que me levaram a deixar o Rio de Janeiro para, pelo menos, passar todos os anos, de quatro a cinco meses naquela cidade. Digo em parte porque há motivos de outra natureza, também relacionados com as características, ou melhor, com as des-características de um Rio de Janeiro que outrora tive orgulho de chamar de meu.A última temporada em Paris foi especial e se destacou das demais, porque conheci um grupo de músicos e cantores que, com sol ou com chuva, animam as manhãs de domingo da Rue Mouffetard no coração do Quartier Latin. Ali, moradores cujas idades variam dos 8 aos 80 e eventuais turistas dançam ao som do acordeom de Christian Bassou, um francês apaixonado pelo Brasil e de quem me tornei amigo. Ele, France Dupuye e outros que gerenciam o grupo dominical parecem ser personagens vivos de um livro de conto de fadas, com uma única função: nos trazer alegria e nos fazer esquecer um pouco desse louco mundo em que vivemos. A cidade parece querer retribuir a querência que tenho por ela porque a sua principal universidade, a Sorbonne, me convidou para dar uma conferência e debater o meu último livro, com os alunos da cátedra de literatura portuguesa daquela universidade.Mas, se a cidade acolhe as pessoas que, com verdadeira paixão cantam em suas ruas, acolhe, lamentavelmente, grupos que celebram paixões muito diferentes. Apesar de ter vivido a maior parte de minha vida aqui no Brasil, ainda não me acostumei a encarar com naturalidade o modo como os nossos governantes e seus súditos diretos vivem algumas de suas paixões.Uma releitura da obra Ética demonstrada segundo a ordem geométrica de Spinoza (1632-1677) pode nos ajudar a entender, í luz da filosofia, um pouco dessa historia. A citada obra, considerada como ápice e síntese do pensamento do autor, apresenta axiomas, proposições e demonstrações, seguindo o modelo euclidiano. Spinoza não pretendeu com este método deduzir matematicamente a totalidade do real e nem se propôs fazer uma exposição Galeliana (quantitativa) do mundo físico. A ética propriamente dita tem inicio na parte III do livro e trata sobre a condição e a natureza humana, as quais são arquitetadas de forma determinista.Ele nos diz: "Não desejamos algo porque o julgamos bom; mas, ao contrário, julgamos que algo é bom porque o desejamos". A parte IV do livro trata da impotência da razão ante as paixões, dos critérios gerais sobre o bem e o mal, do valor das distintas paixões e do modelo do homem livre. Logo no começo, Spinoza nos diz que o homem forma parte da natureza e, portanto, está submetido ao efeito das coisas externas. Dessa forma, as paixões incidem sobre a conduta humana na medida em que sua força pode superar í quela com que o homem preserva a sua existência. E continua: "ainda que as paixões sejam também ideias, a razão não pode anulá-las nem reprimi-las, porque a ideia de uma condição e a condição em si mesma não são da mesma natureza." E uma condição só pode ser vencida pela presença de uma outra de sinal contrário e mais forte que ela. Dada a correspondência entre condição e ideias, o homem é consciente da sua dependência das coisas externas. Na medida em que elas resultem agradáveis ou desagradáveis, surgirá a ideia do bem e do mal. Obviamente o homem, com raríssimas exceções, deseja o que considera bom, mas a razão, sendo diversa daquilo que os homens desejam, só pode considerar bom e virtuoso aquilo que é útil para conservar o seu ser. Desse modo, é bom o que aumenta a sensibilidade do corpo humano ante os corpos exteriores e o que conduz os homens a viverem em sociedade presidida pela concórdia; e é mal tudo aquilo que impede essas coisas.O que parece estar acontecendo é que os sinais estão trocados. Os grupos de políticos que se locupletam em Paris, sabe Deus com o que, e em atitudes de fragrante deboche tripudiam sobre os pobres coitados que os elegeram, deveriam deixar que suas paixões e submissões ao efeito das coisas externas fossem regidas por um padrão de decência. Dessa forma, resistiriam a breguice de serem fotografados expondo os seus sapatos de U$10.000,00, ou posando em estado etílico com guardanapos amarrados í cabeça.Uma sugestão. Que tal se começassem a desejar as coisas porque o povo as julga boas, tais como: acabar com o maior índice do país de prevalência e mortes causadas pela dengue (102.000 casos com 22 mortes), melhorar o sistema educacional do estado do Rio de Janeiro, considerado pelas pesquisas como o pior do Brasil, melhorar o caótico atendimento nos hospitais e por aí vai. Como não farão nada disso, faço outra sugestão. Renunciem e resgatem a dignidade que talvez um dia tenham tido.
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