Artigo Acesso aberto Produção Nacional

MONTEIRO LOBATO: LITERATURA INFANTIL E AS VOZES POLIFÔNICAS EM MEMÓRIAS DE EMÍLIA

2018; Volume: 15; Issue: 1 Linguagem: Português

10.3738/1982.2278.2765

ISSN

1982-2278

Autores

Nara Souza dos Santos, Lisângela Aparecida Guiraldelli,

Tópico(s)

Literature, Culture, and Aesthetics

Resumo

RESUMO: A literatura infantil exerce grande influência no mundo e na vida das crianças por se tratar de um recurso de socialização, possibilitando às crianças interagir com o meio em que vivem, pois a literatura não é neutra e sempre exercerá sobre as pessoas alguma forma de ideologia. Monteiro Lobato (1882-1936), pioneiro da literatura infantil no Brasil, em suas obras, usa de metodologias para que seja possível reconhecer a necessidade de trabalhar a literatura, para que se possa, por meio dela, exercitar a noção de escolha pela própria criança. Sendo assim, nada melhor que trabalhar de uma forma mais lúdica e, é o que Lobato faz em sua obra Memórias de Emília, em que usa a boneca para expor um recurso da linguagem que Bakhtin coloca como Polifonia. Ao usar esse fenômeno, é possível identificar algumas perspectivas ideológicas presentes na literatura de Lobato que constrói sua narrativa sob consciências ideológicas implícitas nas personagens. Ao analisar Memórias de Emília o processo polifônico, ou seja, as várias vozes no interior da narrativa, os diversos conteúdos do nosso contexto social, que são unidos discursivamente por meio da realidade social, com discursos que divergem entre si e tecem diálogos com interação social na narrativa, são percebidos e identificados. Afinal, Memórias de Emília é um romance polifônico justamente por ser uma história que apresenta diversas vozes sociais. Palavras-chave: Monteiro Lobato. Emília. Literatura. Polifonia. SUMMARY: Children's literature has a great influence in the world and in the lives of children by being a socialization feature, enabling children to interact with the environment in which they live, because literature is not neutral and it is always exercise on people some form of ideology. Monteiro Lobato (1882-1936), a pioneer of children's literature in Brazil, in his works uses methodologies to recognize the need to work with literature, so that we can, through literature, exercise the notion of choice by the child. Thus, Lobato works in playful way in Memórias de Emília, in which he uses the doll to expose a feature of language that Bakhtin calls as Polyphony. Using this phenomenon, it is possible to identify some of the ideological perspectives presents in the literature of Lobato who builds his narrative under ideological consciousness implied in the characters. Analyzing Memórias de Emília, the polyphonic process, that is, the multiple voices in the interior of the narrative, the various contents of our social context, that are linked in a discursive way through social reality, with discourses that diverge among themselves and weave dialogues with social interaction in the narrative, are realized and identified. After all, Memórias de Emília is a polyphonic novel because it is a story that presents several social voices. Keywords: Monteiro Lobato. Emília. Literature. Polyphony. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como tema a literatura infantil, Monteiro Lobato e as Memórias de Emília. Monteiro Lobato foi um grande representante do gênero literatura infantil; um historiador e pioneiro nessa arte com histórias e personagens marcantes. O autor foi criador de grandes obras que marcaram a vida de muitas crianças, entre elas o Sítio do Pica Pau Amarelo, que é a mais conhecida por seus personagens marcantes. Entre esses personagens existe uma boneca sem trava na língua e sem filtro, que faz com que a literatura de Monteiro Lobato não seja neutra, que faz com que os sentidos das histórias sejam atribuídos pelos leitores de acordo com o que o leitor conhece de seu meio social. A literatura tem papel fundamental na vida das pessoas e faz com que a vida se torne humanizada podendo, por meio dela, igualar as classes sociais. Ela permite que a criança possa sonhar acordada, perante o lúdico na arte literária, dando a possibilidade de viajar o mundo através das histórias. Como parte importante na vida das crianças, a literatura infantil faz com que elas aprendam e adquiram voz ativa em meio à sociedade e tenham sempre um olhar crítico e reflexivo sobre as ocasiões que, muitas vezes, o mundo lhes impõe como únicas e verdadeiras. Assim, a literatura torna-se direito de todos, como os bens de consumo essenciais para a vida de cada cidadão como casa, comida, música e arte e, acima de tudo, para o bem cognitivo A literatura faz com que as crianças adquiram pensamentos e questionamentos diversos e uma visão de mundo diferente, e procura estimular desde muito cedo o senso crítico, por exemplo, nas crianças para que elas não cresçam achando que a vida tem um sentido único. Por isso, o livro Memórias de Emília, de Monteiro Lobato, busca não se prender a um sentido único, ajuda a compreender que a literatura infantil é importante, exerce grande influência sobre as crianças, pois Monteiro Lobato foi o pioneiro na literatura infantil brasileira e criou personagens como a boneca Emília que estimula e despertar o senso crítico nas crianças através de suas memórias. Emília, uma boneca de pano com suas memórias, possibilita aos leitores viajar pelo mundo por meio de histórias e lugares inusitados humanizando as crianças ludicamente. Parte desses princípios a importância de se deixar viva a memória das crianças e fazer com que elas busquem definir a vida e o sentido que elas desejam. Ao criar sua personagem, Monteiro Lobato deu à boneca de pano personalidade forte, pensamentos e atitudes próprias que fazem despertar o lado crítico do leitor. O presente trabalho tem como objetivo analisar como a literatura infantil e seus personagens podem ajudar as crianças a adquirir autonomia em seus pensamentos e formarem conceitos reflexivo e de liberdade para suas decisões futuras. Para que possa formar o senso crítico a literatura traz recursos como a polifonia: são as vozes que influenciam na formação ideológica de cada individuo. A escolha de Monteiro Lobato como autor e a sua obra Memórias de Emília para contextualizar o trabalho foi devido ao desenvolvimento que o autor dá às suas histórias e personagens e que nos dá a oportunidade de construir, sobre eles, dimensões e possibilidades de sonhar e de questionar o mundo a nossa volta. É à personagem Emília, uma boneca de pano, que Lobato atribui características marcantes, que o autor faz sátiras, faz críticas ao mundo e à língua e dá voz ao brinquedo, e essas várias vozes criam imaginação e questionamentos no leitor O texto está organizado de maneira que possamos perceber na obra Memórias de Emília, noções de polifonia relacionadas com a questão do senso crítico e como o uso das diversas vozes presentes nas personagens de Emília, Visconde, Narizinho, Tia Anastácia etc. que permeiam a obra de Monteiro Lobato e ajudam a construir os diálogos e as ideias. As análises partiram desses usos polifônicos. LITERATURA Segundo Souza (2006), ao pensarmos em literatura temos que ter em mente algo egocêntrico, que independe do fator cultural de cada pessoa, pois nada é óbvio e a literatura cria situações para que sejam levadas ao questionamento e à imaginação de cada um, o que fica restrito ao conhecimento de cada pessoa, pois a literatura é algo muito amplo. Para o autor, há a necessidade de se criar teorias para definir o que chamamos de metodologia da literatura, ou seja, o estudo da literatura em si. Enfim este segundo imaginário parte do princípio de que a literatura é objeto de uma problematização, de um questionamento, apto a revelar a superficialidade da atitude para a qual ela corresponde apenas a uma noção difusa e culturalizada, sendo óbvio, portanto. (SOUZA, 2006 p. 6) De acordo com Máximo (2014), pelo fato de a literatura ser algo abstrato há diversas interpretações, e esse fato leva a considerá-la como algo ideológico da formação leitora de cada um. Considerando que a parte imaginativa é característica da literatura, segundo Máximo (2014), temos que ter em mente que ela é uma ficção e, portanto, nem sempre é verdade; porém, é questionável sendo o texto literário formado por conceitos, regras e tendências. Por conta da não aceitação desses conceitos, regras e tendências, algumas vezes, a sociedade e as pessoas que entram em contato com tal conhecimento literário podem gerar certo sentimento de repulsa por ela. A literatura pode ser considerada algo que não é prático, pois a sua interpretação cabe a cada um de forma que ela não se torne objetiva. Contudo, o fator social influenciará tanto a obra, no momento de sua criação, quanto a sua recepção - como já mostrado acima, toda Literatura é social. As distintas Correntes mostram pontos de vistas diferentes no que tange ao que a obra tenha de Culturalistas etc. para considerarem a obra sobre seus moldes teóricos. Vai depender do que mais lhe chamam atenção, se são a forma, o conteúdo e como as mesmas se relacionam reproduzindo ou não uma realidade. E assim, surgem também necessidades de estudar a obra sobre teorias distintas. Com a industrialização surgiram os Estudos culturais, ou seja, a própria condição social exige novos pontos de vista para a crítica (os mesmos podem adquiri-los ou não). (MÁXIMO, 2014, p. 4) Já de acordo com Cândido (2004), quando pensamos em literatura o conceito quase sempre se volta para livros escritos, o que deixa óbvio. Porém, o texto literário é toda forma de arte, pois é algo muito amplo e podemos considerar como literatura, além de textos escritos, a pintura, a escultura, as músicas, as lendas folclóricas, as piadas, ou seja, toda forma de ficção ou drama no meio cultural de uma sociedade. Sendo a literatura uma forma universal de manifestação artística, então não há possibilidade remota de ficar excluída das nossas vidas em todos os níveis e modalidades, seja entre pessoas analfabetas ou eruditas. Podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. (CÂNDIDO, 2004 p. 17) Por ser pensada como ferramenta de socialização, a literatura está inserida no currículo das escolas como proposta intelectual e afetiva e, segundo Cândido (2004, p. 17.), "a literatura confirma e nega, propõe e denuncia apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas". Considerando que a literatura é tida como universal e para todos, não podemos deixar de reconhecer como parte importante dessa literatura aquela que é voltada para o público infantil, ou seja, a literatura infantil. A seguir, um breve esboço. Literatura Infantil A Literatura Infantil para Cademartori (2010) tem duas vertentes na sociedade: a do gênero e a da educação. Como gênero literário ela é considerada modesta e na educação assume o papel de formadora de leitores. Ela ganha muito no quesito linguagem, pois é trabalhada sempre de acordo como um público ou uma faixa etária para qual a leitura está sendo dirigida. Essa linguagem pode ser verbal, não verbal ou sincrética e isso estimula a fantasia. A fantasia e os efeitos da literatura infantil têm caráter ideológico. A literatura infantil é digna do nome e estimula a criança a viver uma aventura com a linguagem e seus efeitos, em lugar de deixá-la cercada pelas intenções do autor, em livros usados como transporte de intenções diversas, entre elas o que passou a se chamar "politicamente correto", a nova face do interesse pedagógico, quer que se sobreponha ao literário. (CADEMARTORI, 2010 p. 17) A manifestação da fantasia e da ficção oferece ao leitor condições de interpretar os saberes do mundo e da literatura com a capacidade de decifrar conceitos já estabelecidos. É isso que faz com que as crianças sejam capazes de formar seus próprios conceitos de literatura, os quais se tornam relevantes para sua formação. Segundo Cademartori (2010), assim como Lewis Carrol em Alice no País das Maravilhas, a literatura infantil de Monteiro Lobato foge do lógico, do habitual, oferecendo o que não é normal, o inusitado, o absurdo e a desordem, de modo que desestabiliza os saberes dos que eram convictos e a confusão leva à riqueza de sentidos dos fatos ocorridos, e o jogo de palavras leva ao lúdico. A visão que se tem da obra Alice no pais das Maravilhas, de Carrol, também pode ser projetada na obra de Lobato, uma vez que a desordem causada por Emília ao resolver escrever suas memórias faz com que possamos enxergar o lúdico através do modo como ela escreve o seu texto. De acordo com Camargo (2009), a apresentação que Lobato dá às suas obras cria uma confusão na cabeça dos leitores. Muito dessas semelhanças entre as obras, os autores e o modo da escrita se devem à base que Lobato teve sobre literatura infantil que fora europeia. Segundo Cademartori (2010, p. 33), a literatura "Possibilita a crença, identificar e examinar percepções e sentimentos, fatos, situações, formando assim conceitos (...), com a realidade concreta, por meio do que foi simbolicamente construída. A linguagem recorta o mundo, a literatura o modela". Ao pensarmos na criança como leitora temos que ter em mente que são seres ativos, e não se pode deixar de estimulá-la para que se interesse sempre pelo novo e pelo que ela cria. Por isso, a necessidade de valorizar o inato da criança com sonhos, fantasias, lugares e seres imaginários. De acordo com Palo e Oliveira (2006), a ausência de abstração na literatura infantil é favorecida pela concretude e contiguidade do aprendizado de imediato, mas se falta abstração sobra às crianças instintos. Sendo assim, para Palo; Oliveira (2006), a literatura como função utilitarista tem como objetivo educar e, sobretudo, apreender, através do texto literário, a verdade social. No Brasil, a presença de Lobato é pioneira e evidente, pois a literatura infantil brasileira por muito tempo teve como destaque e prestígio Monteiro Lobato como precursor do gênero. De acordo com Cademartori (2010, p. 48), durante muito tempo a literatura infantil no Brasil viveu à sombra de Monteiro Lobato. Monteiro Lobato via o Brasil com um olhar de quem enxerga de fora (CADEMARTORI, 2010), e foi desse modo que ele fez sua literatura sempre inovadora; mesmo passando por várias fases e influências não perdeu sua essência. Suas obras visam sempre à investigação, o debate, o consenso de valores e sempre ultrapassam as expectativas dos leitores por romper com o que chamamos de moral oficial, com os preceitos religiosos e com as normas do governo. Ele estimula seus leitores para que criem conceitos sobre os padrões de suas obras e inventa para si conceitos próprios, explicita a realidade sobre a perspectiva social, política, econômica e cultural deixando sempre um espaço para a conversa entre escritor e leitor. Para Cademartori (2010), Lobato não considera as verdades como absolutas e seus personagens têm como grande marca a liberdade e a criatividade: A moralidade tradicional é dissolvida, o grande valor passa a ser a inteligência. A esperteza, habilidade maliciosa da inteligência, é igualmente valorizada. Emília, sua notável personagem, diz em certa altura da obra: "aprendi o grande segredo da vida dos homens: a esperteza. Ser esperto é tudo''. É essa também a moral de muitas de suas fábulas. O mal reside na ignorância, no subdesenvolvimento, no pensamento encarcerado em valores absolutos. (CADEMARTORI, 2010 p. 54-55). A Literatura infantil no Brasil ganhou muito com as obras de Monteiro Lobato, como é conhecimento de grande maioria fez de sua literatura, durante muito tempo, única. Essa exclusividade, de certa forma, gerou uma defasagem do gênero por um tempo. Ao analisar as obras do autor, pode-se perceber que em Memórias de Emília ele dá ainda mais poder à boneca e ela tem o direito de se expressar ainda mais. Para Cademartori (2010), a literatura infantil faz com que as crianças sejam estimuladas a viver aventuras, pois a linguagem e os efeitos que são criados diante do sonho e da imaginação na literatura permitem estimular a leitura, para qualquer faixa etária, e a construção de diversos significados, e por isso pode-se atribuir às obras variadas interpretações. E isso não depende somente da idade das crianças, mas também, do meio social ao qual ela está inserida, "A moral de Lobato não é absoluta, está centrada em uma verdade individual. Suas personagens seguem uma moral de situação na qual a liberdade é o grande valor", diz Cademartori (2010, p. 55.) para justificar a liberdade e a criatividade das personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo. Monteiro Lobato, segundo Cademartori (2010), cria um vínculo entre a literatura e as situações sociais, sobre um olhar crítico e impiedoso para a realidade do país, e em desacordo com os problemas da sociedade brasileira. O escritor não se restringe somente à denúncia literária, à reflexão e à ação direta da oportunidade, Lobato também escandaliza, assusta e ameaça a realidade nacional da época. Suas características marcantes são dadas pelo risco da inovação, da aventura e da descoberta pessoal de cada um. O inovador na obra Lobatiana ganha cada vez mais força entre a literatura infantil e seu público. O mundo que Lobato cria em seus livros estabelece um reflexo do real, esse contexto permite ao leitor ter um olhar para o futuro e a consciência social de Lobato leva seu leitor a ver na literatura a importância no processo social. A visão de seus livros e o papel ativo da literatura permite que o leitor enxergue a literatura como agente de mudanças. A Obra Memórias de Emília De repente, uma boneca de pano resolve escrever suas memórias, mas como uma boneca de pano tem memórias? Pois não é que a Emília resolve ficar marcada para sempre na vida dos leitores recordando suas aventuras com o pessoal do Sítio. Através de suas memórias Emília conta as aventuras que passou na via láctea quando trouxe consigo Flor, um anjinho de asa quebrada, e tornou-se professora dele e entre os seus ensinamentos está o seu modo de enxergar a vida. Emília escreveu suas memórias com a ajuda de Visconde, memórias estas que ficaram marcadas para a eternidade na vida dos leitores de Monteiro Lobato. Desde que conquistou a fala Emília ganhou vida e liberdade. Uma vez liberta nos contempla com as suas filosofias de vida. Ela é uma boneca com personalidade e dona de si. Emília, com suas memórias, expõe seu modo determinado e teimoso de ver a vida. Com um coração cheio de sonhos, diante das dificuldades da vida, seu modo de expor as verdades "nada mais é do que uma mentira bem contada." (LOBATO, 2007, p. 13), fazendo assim críticas às verdades absolutas que são introduzidas nas nossas crianças; e questionando sobre cada uma delas. Assim como a verdade ela, também, define a vida em suas Memórias: A vida senhor Visconde é pisca-pisca. A gente nasce, isto a gente começa piscar. Quem para dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais. A vida da gente senhor sabugo é isso. Um rosário de piscadas. Cada um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre? Perguntou o Visconde. –Depois que morre vira hipótese. É ou não é? (LOBATO, 2007 p. 17) E o que ela diz nada mais é que a verdade porque o que realmente somos é nada mais que as hipóteses. São esses os questionamentos que nos levam a considerar as memórias de uma boneca crítica e com voz ativa; e como uma boneca de pano tem percepções da vida, Emília faz da nossa imaginação questionamentos. Se não bastasse criticar, a boneca também filosofa "viver nada mais é que um dorme e um pisca e acorda". Observa-se, dessa forma, que a obra de Monteiro Lobato estimula a criança a pensar e a criar seus próprios conceitos da vida. Memórias de Emília é uma obra que, muitas vezes, causa certo constrangimento nas pessoas mais conservadoras, pois a personagem foge do senso comum para definir os acontecimentos a sua volta. Observa-se na obra que é declarada a esperteza necessária para que se viva a influência que uma personagem tem sobre a outra. Lobato deixa bem claro essa esperteza quando Emília faz este comentário: [...] ser esperto é tudo na vida. Aprendi o grande segredo da vida com a vida [...] a esperteza! Ser esperto é tudo (ela se refere neste momento a Visconde a maior vítima de sua esperteza). Quem fez a aritmética? Você. Quem vai ganhar a fama? Eu. (LOBATO 2007, p. 64) Somos presos às convenções impostas por este ou por aquele propósito. Emília nos chama a sair do convencional, pois uma vez presos às tradições somos condicionados a não deixar novas marcas e a não nos impulsionar a um novo olhar sobre o pensar, o refletir e as formas de idealizar o mundo a nossa volta. As críticas de Emília à língua são muito fortes, pois para ela a língua e sua ambiguidade de significados são os maiores motivos dos problemas que acontecem no mundo; diante das variedades de significados das palavras é que acontece a desordem do mundo. "Eu penso que todas as calamidades do mundo vêm da língua. Se o homem não falasse tudo correria bem como os animais que não falam: [...] A língua é a desgraça da terra". (LOBATO, 2007, p. 20) Ela vive a vida plenamente de modo que sua memória possa ser lembrada como alguém que fez a diferença. Lobato, no decorrer da obra, faz com que Emília seja realmente livre, crítica e bem objetiva fazendo com que pensemos no que tem real sentido de liberdade de expressão. Com personalidade forte e mandona, Emília faz de Visconde escriba de suas memórias e o deixa responsável por escrevê-las. Ele escreve coisa que encanta e desencanta a boneca ao mesmo tempo. O fato de Emília não se omitir faz de suas memórias, assim como as outras obras de Monteiro Lobato, uma obra bem crítica, e a presença do visconde põe em prática o que a Emília caracteriza como a esperteza, pois ele não é mencionado como autor de sua obra e passa a viver sempre à sombra da boneca, que ganha a fama pelas memórias, mas, na realidade, em sua grande maioria quem as fez foi o próprio Visconde. Assim como qualquer pessoa Emília tem em seus momentos de fúria atos que fazem com que ela tome atitudes preconceituosas com tia Nastácia, por exemplo, por ter deixado o anjinho sozinho. "Não posso falar nessa negra beiçuda que o sangue me vem à cabeça, Visconde! Perdemos a Florzinha das Alturas só por causa de tal "sacrilégio" que a burrona inventou! Impossível conformar-me com a perda do meu anjinho". (LOBATO, 2007, p. 76). E numa atitude de arrependimento, Emília tende a se redimir exaltando a importância da tia Nastácia perante o sítio. Lobato ressalta com essa atitude que, mesmo sofrendo muito, a raça negra tem um grande papel na sociedade. O autor não deixa de mostra a sua importância: Tia Nastácia, essa é a ignorância em pessoa. Isto é ignorante, propriamente, não. Ciência e mais coisas dos livros ela ignora. Completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sabia. Para o tempero do lombo, um frango assado, um bolinho, para curar uma cortadura, para remendar meu pé quando a macela está fugindo, para lavar e passar a roupa- para as mil coisas de todos os dias, é uma danada! (LOBATO, 2007 p. 90) No final de todas as suas memórias, Emília se assume como uma sonhadora, pois ela começa a narrar o que seria sua consagração internacional: uma viagem a Hollywood na qual ela tem diálogos com Dom Quixote, Shirley Temple e outros personagens e teria a sua história contada pelo estúdio da Paramount. Ela enaltece seu inglês e o fato de conhecer pessoas famosas. Seus sonhos tomam proporções hilárias e entra em suas memórias o que ela deseja que aconteça. Vamos escreva! - disse ela -como poderei escrever uma história que eu não sei? Nunca estive em Hollywood, nem nunca você me contou essa passagem. - E que tem isso seu bobo? Eu também não estive lá e estou contando tudo direitinho. Quem tem miolo não se aperta. (LOBATO, 2007, p. 84) Emília escreve suas próprias impressões sobre si mesma e sobre os personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo, define sua vida antes de aprender a falar e faz considerações a partir do momento que ela começa a ver o mundo através das notícias de jornal do dia a dia a sua volta para concluir que antes ela era feliz. Eu era uma criaturinha feliz enquanto não sabia ler e, portanto, não lia os jornais. Depois que aprendi a ler e comecei a ler os jornais, comecei a ficar triste. Comecei a ver na realidade o mundo. Tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanta miséria, tanto sofrimento... Por isso acho que o único lugar no mundo aonde há paz e felicidade é no sítio de dona Benta. Tudo aqui acontece como em sonho [...] só faz duas coisas brincar e aprender [...]. (LOBATO, 2007, p. 89) A escolha da personagem Emília e da obra Memórias de Emília se justifica pelo fato de ser uma boneca de pano, simples brinquedo, que pertencia a uma criança, Narizinho, e que representa o universo infantil. Sua simplicidade remete para a necessidade de olhar para nossas crianças como sendo capazes de criar seus conceitos como a Emília no decorrer da obra, pois podemos perceber, durante suas memórias que ela é contínua nos seus pensamentos, tem certa rebeldia e, assim como seu criador, luta contra as injustiças no mundo e isto fica cada vez mais evidente no decorrer da obra. Aspectos da Obra A obra Memória de Emília faz referências a uma base teórica da literatura que desperta a atenção dos jovens e das crianças para a leitura do mundo. Segundo Barthes (1989 apud SILVA 2015a, p. 46), a obra de Monteiro Lobato acompanha o que a literatura grega chama de Matheis, Mimiseis e Semiosis, ou seja, saberes, representação e signos que são conceitos que tornam a literatura mais ampla com poesias, sugestões, lacunas, metamorfoses e polissemias. A literatura é considerada por Deluze (1997, apud SILVA, 2015a) como inovadora e está sempre em constante movimento, pois cada leitor tem uma percepção da obra, o que a torna flexível. Pensando assim temos que ter a consciência de que a literatura é de fundamental importância para a formação crítica e pensante da criança na sociedade. A função formadora − A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...] Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...] ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...] Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. (CÂNDIDO, 2002, p. 83 apud SILVA, 2015a.) De acordo com Cândido (2002, p. 85 apud SILVA, 2015a), a literatura tem o poder de transformar o ser pensante, pois através da leitura constroem-se valores e promove-se a reflexão. Já na literatura infantil a principal característica é o imaginário. Segundo Silva (2015a), esse imaginário faz com que as crianças construam seu próprio mundo criando sua própria linguagem de forma geral. Ao refletirmos sobre a obra Memórias de Emília podemos ver o caráter imaginário que o autor cria sobre seus personagens. Uma boneca de pano que fala por conta de uma pílula falante, um sabugo de milho que, além de falar, é intelectual. No decorrer das histórias podemos questionar de quem são as memórias visto que o visconde escreveu boa parte delas. - Sabe escrever memórias Emília? – repetiu o Visconde, ironicamente. − Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber escrever memórias? − Perfeitamente Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão dos outros, ganharem dinheiro com o trabalho dos outros, pegarem nome e fama com a cabeça dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama com a cabeça da gente, é não saber fazer as coisas. Olhe visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já aprendi a viver [...]. (LOBATO, 1970, p. 123) A exploração do homem pelo homem que está à mostra na obra nada mais é que uma crítica ao capitalismo, o homem como mercadoria do homem. A exploração apontada pelo autor destaca as limitações que o poder econômico impõe sobre uma classe menos favorecida. Sendo assim, a intenção da obra é de explicitar e transmitir aos leitores a vida sociológica e econômica do capitalismo imposto pelo social de cada um. Para Silva (2015a), quando Emília apresenta as coisas da terra para Florzinha das Alturas, ela mostra o poder das palavras para descrever ao anjinho todo conhecimento do mundo humano que ela julga ser certo. Emília compara a árvore com o que ela pensa ser alguns seres humano. "Árvore-dizia-é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; em que em vez de braços tem folhas [...]". (LOBATO 2007, p. 92) A comparação que a boneca faz da árvore parada nada mais é que uma crítica às pessoas estagnadas na vida e, assim com seu modo de falar, ela ensina o anjinho os diferentes significados da linguagem no mundo humano. A força das palavras mediante a representação com que Emília brinca com as mesmas faz com que a literatura apresente o valor semântico que cada palavra adquire e isso independe do contexto que ela está inserida. Silva (2015a) defende o que julga ser os três elementos fundamentais para a escrita do texto literário: os saberes; a representação e os signos, pois são eles que deixam a literatura de Lobato com um caráter não utilitarista e capaz de criar reflexões diferentes de pessoa para pessoa através do jogo de palavras. Devido a estes elementos a obra é classificada como romance polifônico, pois carrega consigo vozes que permeiam os diálogos, personagens com poder de ar

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