Artigo Acesso aberto Produção Nacional

Apurar a vida até chegar í borra

2017; Convergences Editorial; Volume: 12; Issue: 6 Linguagem: Português

10.33233/fb.v12i6.945

ISSN

2526-9747

Autores

Marco Antônio Guimarães Da Silva,

Tópico(s)

Linguistics and Education Research

Resumo

Dizem que as pessoas costumam priorizar as leituras que fazem dos cadernos de jornais pelas idades que tem: até os vinte e poucos anos, se preocupam em dar uma olhadela na parte do cinema e de shows; a partir dos trinta, já se interessam pelos temas polí­ticos; e a partir dos sessenta, vão direto para o necrológico, para ver se há ali um convite para o enterro de algum amigo ou conhecido ou quem sabe até mesmo o anúncio de sua própria morte, considerando-se aqui a versão mediúnica da coisa.Mas há algumas exceções para essa divisão didática e cronológica da leitura de cadernos dos jornais que acabo de fazer. Julgo poder me incluir entre elas. Ainda não tinha chegado aos 10 anos e já era leitor assí­duo da coluna que Nelson Rodrigues escrevia para O Jornal ou para a Última Hora.Não sou um Rodrigueano de carteirinha, mas o estilo de Nelson Rodrigues me encantava (para mim ele foi o melhor cronista que o nosso paí­s já nos deu) e viria a ser o responsável pela minha rotina diária de ler os jornais de cabo a rabo. Uma desgraçada rotina que se perpetuou em mim. Digo desgraçada rotina, porque a minha blindagem às noticias ruins foi, com o passar dos anos, diminuindo e tornei-me presa fácil de sentimentos que me levaram, ao longo do tempo, da indignação contida a um estado apoplético, quando vejo os descalabros veiculados na nossa imprensa. Tudo isso reflexo de uma sociedade quase que integralmente corrupta e corruptora; felizmente também aqui com exceções. Mas, em algumas situações, as noticias, ainda que desastrosas, vem acompanhadas de um boa dose de humor; humor negro, mas humor.E não pude conter um irônico sorriso quando li a seguinte notí­cia: "A nota do Brasil no Índice de Percepção de Corrupção, divulgado nesta quarta-feira pela ONG Transparência Internacional, evoluiu de 3,7 para 3,8 (escala de 0 a 10), na comparação com o ano passado". A Nova Zelândia, com nota 9,5 é a mais bem colocada no ranking e a Somália e Coréia do Norte figuram nos últimos lugares, ambos com nota 1,0.No meu saudoso e longí­nquo tempo de aluno de escola primária, o modernismo pedagógico ainda não havia transformado os conceitos numéricos em conceitos qualitativos, representados por letras. Lembro-me que qualquer nota abaixo de sete era considerada nota ruim e podia levar-nos í reprovação; já que a recuperação, mecanismo criado para dar mais uma chance aos desditosos que não cumpriram seus deveres de casa, também ainda não havia dado a sua cara.Atualmente, não se pode deixar de reconhecer que há um certo combate das autoridades constituí­das aos corruptos e até algumas ações que os levam í cadeia. Mas não se pode deixar de notar uma coisa: a maioria dos movimentos que caçaram os delinquentes de paletó e gravata foram frutos de denuncias da imprensa. Eu me pergunto: os órgãos de inteligência que assessoram o governo e que conseguiam, na época da ditadura, monitorar, prender e caçar os "comunistas", não poderiam, antecipando-se às denuncias da imprensa, fazer o mesmo com relação a essas ratazanas? Ou teriam que esperar pela edição da próxima Veja, da Época, ou de qualquer outro periódico?O fato é que, com essa nota, não poderí­amos nem mesmo entrar para uma turma de recuperação. Quem sabe no próximo ano? Ou talvez no próximo século? Ou talvez nunca? Mas não se exaspere, o budismo, nas palavras de Borges, nos diz: é preciso apurar a vida até chegar í borra, depois se desenganar dela; mas nunca sem conhecê-la.

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