
A ilusão do mundo real
2017; Convergences Editorial; Volume: 11; Issue: 5 Linguagem: Português
10.33233/fb.v11i5.1589
ISSN2526-9747
AutoresMarco Antônio Guimarães Da Silva,
Tópico(s)Psychology and Mental Health
Resumoinesperada e indesejada estadia dos 33 mineiros chilenos,durante sessenta e nove dias, em uma caverna a setecentosmetros de profundidade, me remete diretamente para Platão.A sua mais completa obra, A República, engloba conceitos deconstituição, vida pública e relação do cidadão com o estado.Trata-se talvez da primeira utopia literária, ainda que Platãoa prefira chamar de eutopia (o mais belo lugar) em vez deutopia (sem lugar). O que interessa na citada obra, nessemomento, está no Livro VII, que pode ser considerado o maiscompleto resumo de toda A República e que alude í dialéticae ao conhecimento. Um dos temas desenvolvidos é a alegoriada caverna, "a imagem de nossa natureza, no que diz respeitoí educação e carência de educação".A história contada por Platão envolve algumas pessoasmantidas como prisioneiras no fundo de uma caverna. Todosestão acorrentados diante de uma parede, e não lhes é permitidose virar e olhar para trás. Estão condenados a passar toda avida olhando para a parede. Atrás do grupo de prisioneiros, háuma fogueira e uma trilha, essa última utilizada pelos carcereiros.Os objetos carregados por esses carcereiros projetam umasombra na parede em frente aos prisioneiros, os quais passamtoda a vida pensando que cada sombra projetada nessa paredeé um objeto real. Um belo dia um dos prisioneiros se libertae descobre que as sombras projetadas na parede não eramobjetos reais. O que ele julgava ser a realidade (um mundoreal) era, na verdade, um desfi le de sombras. Uma vez fora dacaverna e já adaptado í luz natural o prisioneiro liberto resolvevoltar para contar aos outros, ainda no cativeiro, a descobertaque fizera e explicar-lhes como as coisas realmente eram. Devolta í caverna e com a visão não mais adaptada í escuridão,acaba tropeçando. Tenta, em vão, mostrar como as coisas sãode fato para os seus companheiros de cárcere. É obrigado adesistir, quando começa a ser apedrejado. "Nós conseguimosver muito bem, o cego é você", dizem-lhe os prisioneiros. Elespermanecem condenados í contemplação das sombras semjamais descobrir a verdade.Os mineiros í espera do resgate demonstraram um graude civilidade, de educação, de generosidade e de amizade,que fizeram daquele ambiente um lugar onde os problemasparecem ter sido muito bem gerenciados e resolvidos. Paraalguns, esse ambiente, criado nas profundezas, talvez tenhasido melhor do que o ambiente onde cada um vive na superfície.Afinal, ali, longe de muitos aborrecimentos, puderamter um tempo para a reflexão, um tempo para pensar na suaprópria existência e nos valores atribuídos a cada coisa em si;um tempo para ver as verdades por trás das aparências. Talveztenham descoberto que o mundo real que eles supunham vere conhecer no cotidiano era fantasia. Assim deram-se contade que as verdadeiras sombras não estavam na caverna a setecentosmetros de profundidade. As verdadeiras sombras osacompanhavam nos seus dia a dia, levando-os desprezar a luzda razão em detrimento de manipulações feitas pelos muitosespecialistas. Estavam mergulhados, em plena luz do dia, emverdadeiras trevas com relação ao conhecimento.A República influenciou Santo Agostinho (Cidade deDeus), Tomas Morus (Utopia) e, mais modernamente, ofalecido Saramago (A Caverna).Oxalá possamos, influenciados também por Platão, descobriro mundo real ainda em vida; que possamos tocá-lo,ouvi-lo, senti-lo, sem que precisemos, para isso, permanecersessenta e nove dias presos a setecentos metros de profundidade.
Referência(s)