
EDITORIAL - OS SENTIDOS DA PALAVRA: A FUNÇÃO DA LINGUAGEM NA (DES)REALIZAÇÃO DO MUNDO
2018; Associação Educacional e Cultural de Quixadá, Faculdade Católica Rainha do Sertão; Volume: 7; Issue: 2 Linguagem: Português
10.25190/rec.v7i2.2525
ISSN2357-8483
Autores Tópico(s)Cultural, Media, and Literary Studies
Resumo“Nao gosto de palavra acostumada. A minha diferenca e sempre menos. A palavra poetica tem que chegar Ao grau de brinquedo para ser seria. Do lugar onde estou ja fui embora” Manoel de Barros Certa feita, ao estudar astronomia, li uma enciclopedia que questionou em sua introducao: o que e o universo? A resposta, nada menos pretenciosa: o universo e tudo que existe! Como e possivel tudo o que existe caber dentro de uma unica palavra? Universo. Conclui que a poesia esta contida na ciencia atraves da palavra. A palavra quer traduzir o real, mas e pura imaginacao. Cientificamente, para a semiotica, a palavra e a unidade basica da consciencia que carrega, ao mesmo tempo, o significado construido pela humanidade e o sentido de um sujeito unico e particular (VYGOTSKY, 1989). Para a poesia, a palavra e a conexao com a realidade mais profunda do ser, com os ensinamentos dos antepassados, com as historias e experiencias que sobrevivem na lembranca viva de cada pessoa, nas memorias faladas e registradas em cada rabisco, livro, desenho, diario ou texto. Luria (1987) considera que a estruturacao psicologica da linguagem tem papel fundamental na formacao da consciencia, e produto das formas sociais da vida humana e ocorre simultaneamente produzindo acoes que mudam as atividades que se manifestam nas praticas culturais. “Vygotsky chamou essa proposicao de estrutura semântica e sistemica da consciencia” (LURIA, 1990, p. 26). Dessa forma, a consciencia e possivel dentro de um contexto de significados inventados pela humanidade e reinventados por cada pessoa por meio da linguagem. A linguagem, entao, e expressao genuina na condicao humana e suas formas de expressao sao ilimitadas quando inseridas no campo da consciencia. De forma distinta, a linguagem da ciencia busca entender atraves de palavras o que a poesia sabe sentir. Na passagem da historia do Pequeno Principe (SAINT-EXUPERY, 1985, p. 89-90), os sentidos da palavra se expressam livremente: As pessoas tem estrelas que nao sao as mesmas. Para uns, que viajam, as estrelas sao guias. Para outros, elas nao passam de pequenas luzes. Para outros, os sabios, sao problemas. Para o meu negociante, eram ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu, porem, teras estrelas como ninguem. [...] Quando olhares o ceu de noite, porque habitarei uma delas, porque numa delas estarei rindo, entao sera como se todas as estrelas te rissem! E tu teras estrelas que sabem rir! [...] Teras vontade de rir comigo. E abriras as vezes a janela a toa, por gosto... E teus amigos ficarao espantados de ouvir-te rir olhando o ceu. Tu explicaras entao: ‘Sim, as estrelas me fazem rir!’ E eles te julgarao maluco. O significado da palavra “estrela” carrega diversos sentidos; cada pessoa possui um sentido de estrela (“para uns, que viajam, as estrelas sao guias. Para outros, elas nao passam de pequenas luzes. Para outros, os sabios, sao problemas”) que lhe e particular, mas todos se referem a um so significado, traduzido pela palavra estrela, elaboracao linguistica acordada socialmente e que torna possivel a comunicacao. No entanto, esses significados sao julgados dentro de nossa sociedade (“eles te julgarao maluco”), estao sempre se confirmando, se destruindo e se renovando em meio as interacoes sociais e contribuem para o redirecionamento da propria atividade humana (LEONTIEV, 1979). A linguagem exerce multiplas funcoes no desenvolvimento da consciencia humana. Na perspectiva do desenvolvimento ontogenetico, a crianca ao nascer ja se encontra inserida num ambiente fruto da historia social do trabalho humano, que ira ser compreendido por ela a partir de seu contato com o mundo adulto, atraves das comunicacoes estabelecidas. Dessa forma, a lingua e o meio de comunicacao mais eficiente e constituinte das relacoes humanas, pois permite que ocorra intercâmbio social. Alem disso, a linguagem, que reflete uma determinada cultura, e utilizada pela crianca como mediadora de sua percepcao, meio pelo qual pode nomear objetos, enquadrando-os em categorias e estabelecendo nexos entre essas e outras categorias. Atraves dela, a crianca analisa, generaliza e codifica suas experiencias vividas. Nesse sentido, a crianca e convidada a participar do mundo adulto, no caminho para tornar-se sujeito de sua propria vida, os adultos e as outras criancas apresentam a linguagem pela qual ira aprender os significados do mundo. Para Jean Piaget (1999), as criancas sao pequenos cientistas, a curiosidade e a logica infantis nao separam o real da fantasia e, assim, as palavras estao livres para transitar no mundo imaginario. E comum observar criancas com suas perguntas desconcertantes. A linguagem infantil (des)realiza o mundo, ela cria versoes para os fatos, descontroi o real para “transver” outras possibilidades. Adentrar o mundo das palavras e da linguagem permite a crianca o acesso ao mundo do adulto, no entanto, quanto da infância fica perdida nesse percurso. Suspeito que a impossibilidade adulta de retornar a infância criou a poesia. A licenca poetica e dada ao adulto para fugir as normas e regras quando as palavras ja nao traduzem a existencia. Herbert Vianna na composicao “Tendo a lua” retrata que “o ceu de Icaro tem mais poesia do que de Galileu”, nisso reside a diferenca entre o conhecimento poetico/mitologico e o conhecimento cientifico/moderno. Em que ponto a linguagem cientifica foi distanciando a racionalidade do ser humano da sua emocao? Quanta poesia ha no olhar dos amantes que observam o luar e as estrelas no ceu! Ciencia e poetica, adulto e crianca. Em outras palavras, a linguagem e uma brincadeira que a consciencia inventou para conhecer o mundo e a si mesma. Rubem Alves (2016) ensina que coisas e palavras se misturam, assim como ciencia, arte e misterio. Imagine uma ciencia tao absoluta que responderia todas as perguntas. Imagine a arte sem provocar inquietacoes e arrebatamentos. Nao haveria misterio em viver, tudo seria tedioso, mecânico, metodico e previsivel. No jogo do sentido de cada palavra, ciencia, arte e misterio deveriam reinventar um novo mundo. E as perguntas mais importantes seriam aquelas mais basicas das criancas: “por que esse senhor mora na rua? Onde esta a familia dele?” O mundo carece de ser (des)realizado para que a humanidade sobreviva, para que o humano nao se separe e nem distancie ainda mais de si mesmo e da natureza. Se a ciencia se utiliza da palavra para produzir avancos, igualmente podera utilizar-se para produzir espanto, desigualdade, guerras, violencia e exploracao. Nesse caso, a ciencia poderia criar uma linguagem, a da analise encantada, e possivel analisar, decompor, questionar e criticar mantendo o encantamento? Sim, como diz o poeta Manoel de Barros “se a crianca muda a funcao de um verbo, ele delira”, acredito que se uma crianca consegue, para o adulto tambem e possivel. A psicologia, entao, ofereceria um novo tipo de terapia: a terapia literaria. Para Manoel de Barros (2010), “a terapia literaria consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”.
Referência(s)