AS DUAS GRANDES CRISES DO CONSTITUCIONALISMO DIANTE DA GLOBALIZAÇÃO NO SÉCULO XXI
2019; Volume: 15; Issue: 87 Linguagem: Português
ISSN
2236-1766
Autores Tópico(s)Brazilian Legal Issues
ResumoA crescente permeabilidade do Estado aos agentes globais que atuam no plano financeiro e comunicativo, determinou as duas grandes crises do constitucionalismo frente a globalizacao neste seculo XXI. Poderiamos afirmar que ambas sao crises democraticas no que tange ao seu resultado final, porque ambas dao lugar a processos de involucao democratica. Porem, enquanto uma delas gerou uma involucao democratica “externa” no sentido de que se produz externamente em relacao aos processos politicos estatais, mediante a imposicao de condicoes economicas limitadoras da capacidade de acao do Estado, a outra gerou uma involucao democratica “interna” porque afeta o proprio nucleo dos processos politicos estatais, mediante a interferencia em processos eleitorais e no debate publico em geral de grandes plataformas que gerenciam redes sociais e que almejam determinar os resultados destes processos por meio da manipulacao propagandistica massiva. Por um lado, cronologicamente, a primeira foi a crise financeira, que deu lugar a uma exteriorizacao do poder estatal, submetido a condicoes economicas ditadas de fora. Sob o pretexto da crise, tentou-se implantar uma “interpretacao economica da Constituicao” (Balaguer, 2012b) que debilitou os valores inspiradores do constitucionalismo, afetando em grande medida a legitimidade das constituicoes nacionais. A economia tentou usurpar o espaco nao so da politica, como tambem o da propria Constituicao, marginalizando-a e convertendo-lhe numa instituicao residual no espaco publico, perdendo em grande medida sua forca normativa, seu carater pluralista e sua condicao de fator regulador da dinâmica social (Balaguer, 2013b) Por outro lado, a crise mais recente foi a de carater democratico, interna, e gerada pelas redes sociais, que se manifestou a partir do referendo sobre o Brexit e das ultimas eleicoes presidencias dos Estados Unidos, com a incidencia que tiveram as grandes agencias provedoras se servicos de internet sobre os processos eleitorais, mediante o desenho tecnologico de propaganda massiva adaptada as redes sociais. A involucao democratica gerada por ocasiao da crise financeira e muito grave porque altera as condicoes estruturais basicas do constitucionalismo europeu (direitos fundamentais, direitos sociais, descentralizacao politica, normatividade da Constituicao, divisao de poderes na relacao entre Executivo e Legislativo). Porem, a involucao democratica interna e ainda mais grave por afetar os processos politicos de formacao da vontade estatal internalizando o poder dos grandes agentes globais. Deste ponto de vista, ambas as crises geraram, de maneira complementar, uma debilidade cada vez maior na democracia pluralista. Por um lado, a financeira reduz o pluralismo ao obrigar o Estado, qualquer que seja a orientacao politica de seus governantes – isto e, seja o que for que pensem em relacao a forma de se produzir a acao estatal – a realizar as politicas impostas do exterior (em ultima instância condicionadas pelos especuladores financeiros). Por seu turno, a crise comunicativa e ainda mais problematica, por que nao se limita a condicionar o Estado de fora, pretendendo, ao contrario, subverter os processos democraticos de formacao da vontade estatal para determinar de dentro de tais processos a vontade dos governantes. Nao se trata de dizer aos representantes democraticos o que devem fazer em virtude das exigencias economicas externas, embora pensem de maneira diferente, e sim de definir diretamente o que devem pensar para poder converter-se em opcoes de governo, atraves da manipulacao propagandistica de seus votantes. Lamentavelmente, com isto nao acabam os problemas gerados pelas duas grandes crises do capitalismo de nosso tempo. Para alem dos efeitos visiveis da intervencao destes novos poderes globais, estao surgindo problemas estruturais que podem afetar a propria essencia do constitucionalismo em sua ultima fase de desenvolvimento ate o momento, aquela representada pelas constituicoes normativas e pela democracia pluralista. No plano economico, estao sendo minadas as bases do Estado social e deterioradas suas raizes culturais. No plano comunicativo, apesar da potencialidade participativa das redes sociais, esta se produzindo um crescente isolamento e encapsulamento da coletividade em grupos e uma mudanca de padroes de conduta nos partidos politicos e nos meios de comunicacao, que dificultam cada vez mais os processos comunicativos reflexivos, orientados a formacao de consensos, que eram tipicos da democracia pluralista. A segmentacao e desagregacao progressiva do espaco publico se veem potencializadas extraordinariamente pelas redes sociais, ja que se apresentam como economicamente produtivas para as grandes plataformas eletronicas. O advento da instabilidade politica e dos conflitos sociais virtuais atraves das redes incrementa os recursos publicitarios percebidos. A logica economicista instalada nos grandes agentes globais esta provocando um retrocesso civilizatorio e uma crise existencial do constitucionalismo como o conhecemos. Estamos assistindo uma transformacao dos padroes culturais que haviam regido a vida publica das sociedades democratica no constitucionalismo moderno, e tambem uma mudanca de paradigma. Esta mudanca de paradigma nao pode ser divisada com precisao ainda devido as dinâmicas tao aceleradas geradas nesta tematica, que periodicamente fazem com que surja alguma novidade em relacao as linhas significativas de transformacao na utilizacao das redes sociais com finalidades diversas embora geralmente vinculadas ao beneficio economico das plataformas ou os agentes globais que as utilizam. Este ritmo dificulta muito a analise cientifica, porquanto torna- se impossivel conhecer previamente os efeitos que tais transformacoes terao em medio e longo prazo. A reflexao teorica tem que extrair destas incipientes linhas as tendencias que possivelmente incidirao no espaco publico, na configuracao democratica dos paises analisados e em seus processos constitucionais. Como tentaremos argumentar neste trabalho, a acao combinada de uma pressao economica de base derivada da globalizacao, evidenciada de maneira inequivoca com a crise financeira desde 2008, d de uma crescente intervencao das plataformas que gerenciam redes sociais nos processos politicos (evidente especialmente a partir de 2016, quando teve seu “ensaio geral no referendo sobre o Brexit) esta provocando uma transformacao das condicoes materiais e das pauta culturais do constitucionalismo e dando lugar a uma mudanca de paradigma. Caso esta mudanca se consolide, estariamos ante um constitucionalismo isolado, residual, que nao poderia cumprir as funcoes historicas que lhe caracterizam. Um constitucionalismo sem legitimidade diante das demandas historicas e tecnologicas de nosso tempo, tendente a permanecer marginalizado em relacao aos processos politicos reais, e que seria incapaz de controlar os autenticos poderes de nossa epoca e de garantir os direitos fundamentais diante destes poderes. Isto acontece justamente quando o constitucionalismo havia logrado controlar o essencial no poder do Estado atraves de mecanismos politicos e juridicos de cobranca de responsabilidade estabelecidos nas constituicoes normativas. O motivo fundamental consiste no fato deste poder, antes exercido no seio do Estado nacional, ter se desvinculado cada vez mais do Estado, sendo exercido agora por instâncias globais. Portanto, o constitucionalismo tem que esbocar novas estrategias que possibilitem a recuperacao das funcoes historicas que lhe caracterizaram como movimento civilizatorio, para controlar o poder aonde este se encontra atualmente, em grande medida fora do Estado e dos circuitos internos de formacao da vontade estatal.
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