Artigo Acesso aberto

A agenda reformista do Banco Mundial para a saúde pública: um breve histórico e as novas propostas ao sistema único de saúde (SUS) brasileiro

2019; Volume: 11; Linguagem: Português

10.14295/jmphc.v11isup.713

ISSN

2179-6750

Autores

Letícia Bona Travagin, Gustavo Bonin Gava,

Tópico(s)

Global Public Health Policies and Epidemiology

Resumo

Os sistemas de saúde pública dos países centrais foram afetados pela crise do Estado de Bem-Estar Social, a partir dos anos 1970, acompanhada por uma onda de proposições reformistas associada ao estabelecimento de um ambiente institucional favorável à relação custo-benefício, tendo como objetivo a eficiência dos prestadores de serviços de saúde. Neste contexto, o Banco Mundial destacou-se como instituição disseminadora de uma agenda social compatível com diretrizes neoliberais. Os objetivos deste trabalho são: i) recapitular algumas questões levantadas pelo Banco nos anos 1990, voltadas aos países subdesenvolvidos como um todo, e ao Brasil em particular; ii) demonstrar qual é a visão contemporânea do Banco em relação ao SUS brasileiro; iii) instigar algumas questões sobre as potencialidades e as limitações dessa nova perspectiva. Para isso, foram revisados oito documentos do Banco, sendo que quatro deles dirigem-se aos países subdesenvolvidos em geral (1987, 1993, 1997 e 2000), e quatro deles dirigem-se ao Brasil (1991, 1995, 2017 e 2018). O Relatório de Desenvolvimento Mundial Investing in Health, de 1993, marcou a entrada definitiva da instituição no setor de saúde. Desde então, o discurso do Banco gira em torno da eficiência nos sistemas de saúde, medida por indicadores econométricos. Desta forma, propõe-se que o Estado privilegie a provisão de serviços de larga escala, que maximizam a relação custo-eficiência, como programas de vacinação, planejamento familiar e prevenção de doenças contagiosas. Essas políticas deveriam ser focalizadas nas populações pobres, deixando que os demais procurem assistência privada, o que implica transferir um grande volume de serviços ao setor privado de saúde, em especial os de média e alta complexidade. Durante os anos 1990, a agenda do Banco propôs, em termos gerais: i) o Estado mais regulador e menos provedor direto de serviços; ii) a concorrência entre os serviços públicos e privados de saúde, que poderiam impulsionar a eficiência geral na área da saúde; iii) iniciativas estatais favoráveis à oferta e à demanda do setor privado, como subsídios e incentivos fiscais; iv) transferência de serviços para o setor privado, lucrativo ou não, por meio de privatizações e parcerias; v) comprometimento do Estado com um pacote de serviços públicos básico e focalizado nos mais pobres. Essa agenda tornou-se hegemônica, em termos técnicos e políticos, no mercado global de ideias para a saúde, e foi dirigida ao Brasil logo após o surgimento do SUS. A publicação de 1991, Brasil: novo desafio à saúde do adulto, já trazia a visão que seria consolidada mundialmente pelo Banco em 1993. Além das recomendações já descritas, o Banco demonstrava especial preocupação com a aprovação recente do Sistema Único de Saúde, que se comprometeu a prover a todos os cidadãos assistência à saúde universal, pública e gratuita. Essa preocupação foi enfatizada em 1995, no texto A organização, prestação e financiamento da saúde no Brasil: uma agenda para os anos 90, que dizia não ser possível cumprir a promessa de universalidade. O documento recomendou a criação de um pacote mínimo de benefícios universais, incentivos fiscais para seguros privados, ampliação da compra de serviços privados pelo Estado, transferência da prestação de serviços para a iniciativa privada e criação de mercados internos dentro do sistema público. Além disso, houve a sugestão de copagamento no sistema público pelos usuários que tenham acima de um determinado nível de renda. O SUS não absorveu toda a agenda, mas, dentre as recomendações adotadas, destacamos duas. A primeira foi transferência da gestão de serviços públicos para associações privadas sem fins lucrativos, facilitada e ampliada após a introdução das Organizações Sociais de Saúde, fruto da Reforma do Estado de 1995. E foram implementados incentivos fiscais, com renúncias, presunções creditícias e isenções, em favor de pessoas físicas beneficiárias de seguros privados, pessoas jurídicas que contratam seguros empresariais, empresas farmacêuticas, e entidades sem fins lucrativos. Os diagnósticos sobre o SUS nas duas publicações recentes (2017 e 2018) mantêm-se baseados nos cálculos de eficiência, não supõem o aumento no orçamento do sistema e afirmam que o SUS pode fazer mais com o mesmo volume de recursos. O Banco defende a implementação e integração das Redes de Atenção à Saúde (RAS), bem como a centralidade da atenção primária na estruturação do sistema. Porém, entende que a ampliação dos serviços deve ocorrer sob gestão privada, e que a esta seja garantida mais autonomia. Defende que se ampliem as atribuições dos profissionais não-médicos, muitas monopolizadas pelos médicos, e recomenda o pagamento por desempenho. Também reconhece a regressividade do Gasto Tributário e a necessidade de reduzi-lo. Por fim, propõe interação entre o modelo público e o privado suplementar, em termos de regulamentação do duplo emprego, fluxo conjunto de informações, ressarcimento quando pacientes segurados são atendidos no SUS, e aproximação entre os modelos de atenção. O Banco levanta questões importantes, sobre as quais enxergamos algumas potências e alguns riscos. A ampliação da autonomia dos enfermeiros tem um potencial interessante se aliada ao trabalho multiprofissional, com conhecimento compartilhado. Caso contrário, trata-se apenas de sobrecarregar uma categoria e condicioná-la a metas abusivas, o que se complica em caso de pagamento por desempenho. É um problema também compreender a produtividade a partir do número de consultas realizadas, o que não implica imediatamente em qualidade e resolutividade. A integração das RAS é necessária, mas a gestão privada dos serviços pode agravar a fragmentação e a evasão de recursos. É ainda mais urgente a ampliação das RAS nos interiores dos estados e territórios pobres, onde o setor privado sempre demonstrou pouco interesse. Quanto à redução do Gasto Tributário, seria ideal que isso levasse à ampliação de recursos no SUS, o que não é previsto pelo Banco. E, por fim, a aproximação entre os modelos de atenção do SUS e do setor suplementar, tendo em vista o contexto político recente, é motivo de alerta porque pode acarretar perdas em termos de acesso universal, integralidade e equidade, como concebidas pelo SUS. Em conclusão, algumas dessas medidas poderiam ser proveitosas se pensadas sob um olhar amplo do sistema, com ambiente regulatório rígido e favorável ao SUS, e com o reconhecimento de que o orçamento do sistema não é suficiente.

Referência(s)