Artigo Acesso aberto

DOSSIÊ: A literatura infantil na educação em direitos humanos: fundamentos e ideologia

2021; Volume: 9; Issue: 1 Linguagem: Português

10.5016/ridh.v9i1.34

ISSN

2357-7738

Autores

Clodoaldo Meneguello Cardoso,

Tópico(s)

Education Pedagogy and Practices

Resumo

Já se vão 40 anos que Maria de Lourdes Chagas Nosella publicou, pela Editora Moraes (1981), sua dissertação de mestrado com o título: As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos. Dando continuidade à tarefa, que Umberto Eco e Marisa Bonazzi realizaram em livros didáticos na Europa, com tradução aqui como: Mentiras que parecem verdades (Summus, 1980), Nosella trouxe essa crítica ideológica para a realidade brasileira. Com o avanço e fortalecimento das lutas de resistência à ditadura militar e a visão da escola como aparelho ideológico do Estado (Althusser), o livro As Belas Mentiras era leitura obrigatória para o movimento de crítica e reformulação dos livros didáticos no Brasil. Passou-se a discutir amplamente sobre os textos e ilustrações dos livros didáticos que transmitiam mensagens subliminares (algumas nem tanto) de autoritarismo, individualismo, preconceito, machismo, racismo e naturalização das desigualdades sociais. Assim, mais um movimento social de resistência anunciava novos tempos de liberdade na educação, com a alvorada da democracia que ressurgia tênue, mas insistente, no horizonte. Os estudos críticos à ideologia conservadora dos livros didáticos, na década de 1980, fizeram contraponto aos propósitos das disciplinas: Educação Moral e Cívica, Estudos de Problemas Brasileiros e Organização Social e Política Brasileira, introduzidas pelo governo militar para preencher o vazio deixado pela supressão das disciplinas de Sociologia e Filosofia. Dessa forma, com a retomada paulatina da democracia, fortaleceu-se a concepção de uma educação libertadora de todas as formas de opressão, fundamentada nos ensinamentos de Paulo Freire. A partir daí iniciou-se um novo ciclo de produção de livros didáticos e de literatura infantil, fazendo com que a criança e o adolescente vivenciassem também na escola aquilo que era sua vida no dia-a-dia da realidade brasileira. Surgiram histórias infantis não mais doutrinantes com a moral da história, mas sim estimuladoras – além da fantasia das narrativas e do prazer estético e lúdico da linguagem poética – de interrogações sobre as desigualdades sociais, os preconceitos, os problemas urbanos e o descaso com natureza. Tudo em nome da formação de uma cidadania crítica, participativa, autônoma e democrática. Avançou-se muito, todavia, quarenta anos depois, os valores conservadores ainda encontram eco em boa parte da sociedade brasileira, que neles vê um acolhimento psicológico pessoal e a solução mágica de problemas estruturais como a violência, o desemprego, a pobreza e a corrupção. E com a pandemia essa postura amplificou-se mais ainda. Neste contexto, chegam novamente às escolas projetos educacionais conservadores; entre eles retomam-se os clássicos da literatura infantil sem o devido tratamento crítico axiológico que todo material paradidático deve ter, principalmente enquanto produtos de outros tempos e espaços culturais. Numa visão conservadora, são privilegiadas as fábulas tradicionais, para alfabetização, que transmitem pela moral da história valores de “harmonia com a identidade social” e não de “convivência na diversidade”; de “mérito individual” e não de “conquista coletiva”; de “ordem hierárquica” e não de “relações democráticas”; “de respeito aos mais velhos” e não de “respeito ao outro”; de privilégios de reis e rainhas e não de “direitos de todos”; enfim “de perpetuação da subserviência ao adulto” e não de “construção da autonomia”. Isso sem falar de quão distantes ficam nossas crianças das narrativas brasileiras produzidas pelos indígenas, negros, camponeses, quilombolas, ribeirinhos e favelados. Daí por que se vê hoje a necessidade de reafirmar a importância de um amplo debate sobre a literatura infantil e sobre formação crítica dos professores para uso dos textos clássicos e tradicionais nos primeiros anos da educação básica. Com este propósito, a RIDH oferece nesta edição um dossiê de artigos sobre A literatura infantil na educação em direitos humanos: fundamentos e ideologia. É na primeira infância que se constroem os alicerces das habilidades de raciocínio e da linguagem. E lá também que ocorre a gestação do desenvolvimento socioemocional, parte intrínseca e indispensável na formação da criança desde a primeira infância. Esse desenvolvimento pleno só é possível se a criança realizar as vivências coletivas que envolvam imaginação, sentimentos e valores em suas relações com o outro. Nesse campo, o recurso de contar e de ler histórias é um instrumento metodológico importante para formação de bases éticas nas relações intersubjetivas, além do desenvolvimento intelectual, linguístico e de sensibilidade estética. Em sua origem, a contação de histórias infantis nos remete às práticas de transmissão oral primitiva de acontecimentos e de ensinamentos. Esse forte caráter educacional moral está claramente presente nas histórias infantis clássicas medievais, povoadas de castelos, reis, princesas e bruxas. Hoje a literatura infantil, na educação escolar, ainda é uma fonte importante na construção de valores que podem moldar a primeira visão de si, do outro e do mundo em que vive. Pensar a literatura infantil na educação em direitos humanos, não é reduzi-la a “moral da história”, mas analisar as bases axiológicas das relações de dominação e de reconhecimento do outro. Para isso o presente dossiê traz, com pesquisas e ensaios, reflexões sobre: - a pedagogia comprometida com a promoção da dignidade humana que vê na literatura infantil “material inestimável para a educação em direitos humanos”; - “a arte literária como fenômeno estético capaz de desenvolver o psiquismo infantil”; - “a fecundidade da literatura infantil para a garantia de um atendimento pleno dos direitos humanos envolvidos em situações de refúgio e migração”; “a reprodução histórica da dominação sobre o gênero feminino”, nas histórias tradicionais de bruxas; e também sobre a opressão de gênero na literatura infantil, com a “reprodução da ideologia da supremacia masculina na divisão sexual do trabalho”. Em resumo, há uma literatura infantil com função ideológica de domesticação do outro e há uma literatura infantil literatura infantil que proporciona uma educação em direitos humanos, ou seja, vivências e reflexões de respeito à criança como sujeito construtor de valores emancipatórios de liberdade, solidariedade e igualdade entre diferentes. ARTIGOS DIVERSOS Nessa seção, a RIDH 16 traz 10 artigos de diferentes áreas, perpassando os direitos humanos como temática interdisciplinar e transversal. De leituras da Filosofia temos: uma reflexão sobre a trajetória histórica do humanismo ético que deságua nos direitos humanos; e um estudo sobre as relações entre o Estado ditatorial e as violações dos direitos humanos na pandemia. Do Direito vem um convite para a reflexão sobre os fundamentos da educação em direitos humanos a partir das teorias universalistas, relativistas e confluentes; e uma investigação sobre “as possibilidades de acesso à justiça e promoção dos direitos humanos no Sistema Interamericano a partir da criação de uma Defensoria Pública Interamericana”. A Educação contribui com estudos que vão desde revisitações história da educação em direitos humanos no Brasil e na América Latina, passando por um estudo sobre “as estratégias internacionais de inclusão no sistema educativo em Moçambique”, até análises dos ODS da ONU e sua relação a educação em direitos humanos, e em especial com os direitos e empoderamento das mulheres, numa experiência local-global, na região Nordeste do Brasil. A edição finaliza com a área da Comunicação que apresenta um “estudo qualitativo das representações sociais de imigrantes venezuelanas na América do Sul no período de 2016 a 2019, a partir de manchetes de notícias divulgadas em jornais digitais brasileiros”. Boa leitura! * * * Os posicionamentos, contidos nos artigos publicados, são de responsabilidade dos/as autores/as. Junho de 2021. Clodoaldo Meneguello Cardoso Editor da RIDH-Unesp

Referência(s)