Artigo Revisado por pares

A Cega e a negra: Uma Fábula

2021; The Feminist Press; Volume: 49; Issue: 1 Linguagem: Português

10.1353/wsq.2021.0011

ISSN

1934-1520

Autores

Míriam Fábia Alves,

Tópico(s)

Cultural, Media, and Literary Studies

Resumo

A Cega e a negra:Uma Fábula Miriam Alves (bio) Observava a aranha em suas peripécias acrobáticas. Pendia do teto num estranho equilibrismo. O fio que a sustentava, tênue, invisível. Os olhos hipnotizados acompanhavam o sobe e desce do inseto. Às vezes, a pequena aranha, como para provocá-la, descia próximo à sua cabeça e, com movimentos rápidos e graciosos, retornava, abeirando-se do teto. Poderia ficar ali horas, dias, meses a fio. Ela e a aranha tecendo fios infinitos, brincando com a gravidade. Cecília tecendo fios invisíveis, aranha fabricando fios reais. Olhos fechados, absorta, pressentia a aranha movimentar-se em silêncio. Manhã de um inverno tipicamente tropical. O sol, envolto em nuvens, não aquecia. O vento matinal cortava o espaço, batia na janela, como pancadas de alguém que pede para entrar. Entrar! Ali residia o mistério das coisas. Entrar, apenas uma ação. Sair, outra ação. Ações desconhecidas para a aranha no seu sobe e desce, não entrava nem saía … tecia em acrobacias. Acrobacias determinadas pela magia do fazer, e não do viver. Ela e Flora faziam acrobacias do viver, dependuradas num fio aparentemente tênue da vida. Fio invisível, resistente, frágil. Abriu os olhos, a aranha tecia. Um fio branco saído de suas entranhas unindo-se a outros. Cecília igualou-se àquela criatura. Um estranho destino as unia naquele espaço. Pensou em Flora. Chamava-a assim por nunca ter entendido por que lhe deram o nome Floresta Brasileiro. Quando se apresentaram, guardou um sorriso de deboche e de curiosidade, retendo a pergunta: por quê? Floresta a intrigava com a forma como via o mundo. Via? Floresta não via, era cega. Movimentava-se nos espaços como se os soubesse por definição. Flora e Cecília, um acaso as colocara um dia frente a frente. Cecília olhava a aranha no teto, espantava o pensamento difuso. Hoje estava cansada de acrobacias, recusava-se a seguir o seu destino, tecer a [End Page 412] própria teia. Encantava-se com o equilíbrio da aranha. Equilíbrio que ela própria achava ter perdido. Fazia uma semana que não via Flora. Conheceram-se num dia cotidiano. Cecília corria atrasada para pagar uma conta no banco. Previa que de novo aquela maldita porta giratória travaria para ela. Pelo alto-falante, ouviria a voz metálica: "Tem objetos metálicos? Celular? Chaves? Moedas?" Não, não possuía nada disso. Porém, passaria pela situação vexatória de abrir a bolsa e procurar. Ou melhor, fazer-se de quem procura o que não perdeu. Depois, olhando para o segurança apreensivo, impor no rosto um semblante que se traduziria em "Tô limpa!" Não entendia por que as portas giratórias não giravam na sua vez de adentrar o recinto. Passou a não portar mais bolsa, somente o necessário nos bolsos. Mesmo assim, lá vinha a voz: "Tem chave? Guarda-chuva? Celular? Moedas? Objetos metálicos?" Naquele dia, rebelou-se, sem paciência em submeter-se, mais uma vez, ao constrangimento de ser barrada. Fora barrada quase que a sua vida toda. Naquele dia: "O escambau para tudo!!!" Parada a porta do banco, respirou fundo, numa atitude de "É hoje." Entrou com uma força de romper paredes—levar tudo no peito, na valentona, como dizia sua mãe. A porta não travou, girou com a violência. Ela foi lançada para dentro do recinto. O corpo acostumado ao obstáculo, não o encontrando, projetou-se no espaço. Tropeçou na bengala de Flora, que caminhava dominando o ambiente, como se tivesse olhos nos pés. Para não a derrubar, instintivamente a abraçou. Gesto tido como ameaçador pelos seguranças, que a agarraram com truculência, protegendo o patrimônio bancário e a integridade de Flora. Agora, a aranha já tecera geometricamente o centro de seu trabalho natureza. Flora poderia não ver a aranha tecer, mas sentia a vida tecendo destinos. Seu destino. Aparentemente frágil qual fio na...

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