Artigo Revisado por pares

Diante do espelho: refração e iluminação em Bernardo Carvalho

2005; Modern Humanities Research Association; Volume: 21; Issue: 1 Linguagem: Português

10.1353/port.2005.0011

ISSN

2222-4270

Autores

YARA FRATESCHI VIEIRA,

Tópico(s)

Literature, Culture, and Criticism

Resumo

Diantedo espelho:refração e iluminação emBernardoCarvalho YARAFRATESCHI VIEIRA Ao invés,as linhasque atravessam a profundidade do quadrosão incompletas; falta-lhes a todasumapartedoseu trajecto. Esta lacuna é devidaà ausênciado rei- ausênciaque é umartifício dopintor. * BernardoCarvalhoé, sem dúvida,um escritor com fisionomia própria, facilmente reconhecívelno seu estiloe nos interesses que movemos seuslivros. Aliás,se não soubéssemos que um determinado livroera seu, poderíamosidentificá-lo comoautor já a partir do incipit.2 Alémdo estilo enxuto, de frases curtas, parcimoniosas emadjetivos e advérbios - muitas vezeselidindoo verboou transformando emfrases independentes o que se esperariacomo uma coordenaçãoou subordinação- reconhecemos a preocupaçãocoma questãoda verdadee da mentira, da compreensão de umsentidoque é sempreelusivo, querao níveldosfatos que suportam narrativamente o texto, quernaprópria constituição do discurso ficcional, dispersoe refratado atravésde filtros múltiplos; em ambos os casos,a buscade umsentidoé o fiocondutorda efabulaçãoe da própriaescrita. Deveríamosrelacionaro projetode dar sentidoao mundo e o seu recursivo fracassoà práticaprofissional do autor,enquantojornalista? Falando com a voz de Thomas Pynchon,numa entrevista 'exclusiva e fictícia',assimdefineBernardoCarvalhoo trabalholiterário:'Não existeliteratura nem arte sem paranóia. Provavelmente não haveria nem civilização.A paranóia é a tentativa de dar sentidoao que não tem,ao desconhecido.Ε não é isso que o homemtentafazerdesde o início dos tempos?'3No momentoem que o documentárioinvadeo campo do ficcionale se assistea uma sériede êxitosde bilheteria e de vendagemque devemo seu sucessoaparentemente a uma necessidade crescente de Verdadefactual', de acessoà informação fidedigna (quando, aliás,paradoxalmente, os própriosnoticiários ao vivo,candidatosmais 1 Michel Foucault,'Las Meninas', Aspalavrase as coisas:umaarqueologia das ciências humanas, trad.António RamosRosa (Lisboa:Portugália Ed., 1968),p. 32. Umaversãomodificada do presente ensaiofoipublicada emNovos Estudos Cebrap, no.70 (Nov.2004),pp. 195-206. Veja-se, porexemplo, comose iniciam os doisprimeiros contos de Aberração (1993;: ludo o que ae[sic]fez, disseou sentiu navidaé falso'('AValorização'); 'Eu nãopodiaterentendido mesmo'(Ά alemã');o seuromance Nove Noites (2002): 'Istoé paraquandovocêvier. É preciso estar preparado. Alguém terá depreveni-lo. Vaientrar numaterra emquea verdade e a mentira não têmmaisos sentidos que o trouxeram até aqui'; e Mongólia (2003): 'Foi chamadode Ocidental pornómades que nãoconseguiam dizero seunomequandoviajoupelosconfins da Mongólia. [. . .] Suavolta intempestiva coincidiu coma eclosãodapneumonia atípica naÁsia, o quepodeterservido de explicação paraalguns, masnãoparamim.' 3 Έ tudomentira!' 'Mais!',Folha deSãoPaulo, 25abril2004,pp.4-5. BERNARDO CARVALHO 211 qualificados, portanto,pela co-presençae imediatez,à representação fieldos fatos, têma sua manipulaçãodesnudada),os livros de Bernardo Carvalho lexicalizamessa desconfiança,embora o façam de forma tortuosamente irónica ao apropriar-se, naficção, dediscursos migrantes de outrosregistros supostamente comprometidos com o real:a reportagem jornalística, a investigação académica,a psicanálise, o diáriode viagem, o relatoconfessional autobiográfico, a descriçãodo guiaturístico. Porum lado,a escrita ficcional desqualifica essesdiscursos, enquantoprodutores de verdade,criticando-os explicitamente pela vozdo narrador ou através da justaposição de vozes conflitantes; por outro,porém,ao receber e reproduzirno textoficcionalesses recursos,que se desautorizam apenas obliquamentee se diluemnuma efabulaçãopropositadamente complicadae até folhetinesca, criauma espécie de armadilhapara um públicomedianamente letrado,que procuracada vez maisse informar atravésda leiturade revistas de opinião,viagensturísticas ecológicase culturais, reportagens diretas, buscasna internet. O resultadoé que o leitorsaide umlivrodessescoma sensaçãode terlidoalgo 'inteligente', 'lúcido' e 'moderno'(ou 'pós'); mastambémcoma incómodasensação de terperdidoalgo,que a escrita elusivae o acúmulode informação e de intriga novelescadeformou ou ocultou.Essatendênciaparece-me que se cristaliza nos dois últimosromances, NoveNoites^ e Mongólia,5 nos quais medetenho,portanto, paraumexamemaisminucioso. Os doistextos espelham-se, emmaisde umsentido. Porumlado,nume noutroas posiçõesrespectivas dosprotagonistas invertem-se, emaparente complementaridade: em NoveNoites, um antropólogo americanovemao Brasil paraestudar osindígenas brasileiros 'na tentativa de explicar o comportamento pela inserçãosocial e assimrelativizar os conceitosde normalidadee anormalidade no que dizrespeito aos indivíduos'(p. 17); em Mongólia, acompanhamos os trajetos de doisbrasileiros que percorrem as estepese os desertos mongóis:o primeiro delesé fot...

Referência(s)
Altmetric
PlumX