Tardes de Província, Herança(s), Bicicletas
2020; Modern Humanities Research Association; Volume: 36; Issue: 2 Linguagem: Português
10.1353/port.2020.0024
ISSN2222-4270
Autores Tópico(s)Cultural, Media, and Literary Studies
Resumo266 Manuel de Freitas Tardes de Província para a Renata Correia Botelho e a Vanda Brotas Lembro-me muito bem da tarde em que disse ao meu tio José Carlos que a Paixão Segundo São João de Bach (que acaba de ser magnificamente gravada por René Jacobs) me agradava mais do que a Paixão Segundo São Mateus. O meu tio, que tinha quase sempre razão, deu-me a entender que eu estaria a ser injusto. Havia, na verdade, um problema de base: eu atinha-me então às gravações de Karajan, e não conhecia ainda as de Leonhardt ou Herreweghe. E isso viria, claro, a fazer toda a diferença. Hoje, felizmente, não preciso de escolher — e apetece-me cada vez menos ter razão. * * * * * Sinto, de quando em quando, saudades dessas tardes longas em que o tédio era um luxo possível. Em Lisboa — ou em mim, talvez — o tempo foge, mal chega para o pouco que desejo fazer de cada dia. Persistirão a angústia, o vazio, a ansiedade — mas de modo nenhum o tédio. E Bach, com ou sem Deus, não deixou de me acompanhar. Tem o mesmo exacto efeito da praia rochosa com que a Achadinha nos surpreende, ao virar da curva. E pode também parecer a lezíria, quando entardece. Durante cerca de duas horas, Deus torna-se evidente. Depois, melhor ou pior, continuamos a morrer. Herança(s) para a Inês, da Rua dos Sapateiros à Rua Zófimo Pedroso (que é, literalmente, o fim da cidade e talvez do mundo) Há fogos visíveis, que ardem pela vida fora. Será, para mim, o caso de Andrei Tarkovsky, de quem revi há poucos dias Offret (O Sacrifício). Vi pela primeira vez esse filme com dezoito anos. E vira, alguns meses antes, Nostalghia. Imaginei muitas vezes o meu suicídio — com gasolina, de preferência, em quase tudo semelhante ao de Domenico — a acontecer no cimo da igreja de Santa Engrácia (onde, curiosamente, nunca entrei). Gosto muito daquele largo, daquela tão clara e inesperada assimetria entre o Panteão e as casas tacanhas mas bonitas que o rodeiam. É como se ouvisse Bach, o pai, a conversar com Irene Lisboa. * * * * * Ver O Sacrifício com quarenta e três anos é, fatalmente, uma experiência distinta. Agora também conheço Dreyer, Hammershoi, Nozolino. Estabeleço, como diria Clarice Lispector, «laços de família», assentes num sangue que não é o do mero parentesco biológico. E há, de facto, imagens ou citações (e uma imagem pode ser uma citação, ou vice-versa) que nos ou me remetem para Dreyer, no que nele já era plausível evocação de Hammershoi. A Nozolino (e é-me bastante indiferente saber se ele concorda ou não) passei a associar as súbitas imagens a preto e branco que, em jeito de intermezzi, nos são oferecidas quer em Nostalghia quer n’O Sacríficio. Não sou, aliás, o primeiro a sugerir esta aproximação. 267 Translated by Rui Pires Cabral Country Afternoons to Renata Correia Botelho and Vanda Brotas I perfectly remember that afternoon when I told my uncle José Carlos that I liked Bach’s St. John’s Passion (which at the time had just been magnificently recorded by René Jacobs) better than his St. Matthew’s Passion. My uncle, who was almost always right, suggested I was probably being unfair. There was, in fact, a fundamental problem: I was referring to the Karajan recordings, and was not yet familiar with the Leonhardt or Herreweghe ones. And, of course, that would come to make all the difference. Today, fortunately, I don’t need to choose — and I feel ever less keen on being right. * * * * * Now and again, I miss those long afternoons when boredom was a feasible luxury. In Lisbon — or in myself, perhaps — time flies, it’s hardly enough for the very little I wish to do with each day. Anguish, emptiness, anxiety will persist — but surely not boredom. And Bach, with or without God, has never left me since. He has the exact same...
Referência(s)