Artigo Produção Nacional Revisado por pares

Un Catholicisme colonial: Le mariage des Indiens et des esclaves au Brésil

2022; Duke University Press; Volume: 102; Issue: 1 Linguagem: Português

10.1215/00182168-9497317

ISSN

1527-1900

Autores

Maria Regina Celestino de Almeida,

Tópico(s)

History of Colonial Brazil

Resumo

Ao analisar o papel da Igreja na formação e no funcionamento de uma sociedade escravista e católica no Brasil colonial, do século XVI ao início do XVIII, Charlotte de Castelnau-L'Estoile direciona o foco de sua pesquisa para o casamento de indígenas e escravos, revelando seu lugar central nesse projeto. Os inúmeros debates sobre a conversão e o matrimônio de infiéis e escravizados no ultramar, primorosamente analisados em toda sua extensão e complexidade, desde a construção das primeiras bulas até as Constituições da Bahia (1707), revelam a importância da questão para os diversos agentes sociais, do papa aos convertidos. Missionários, teólogos, clérigos e instituições eclesiásticas empenharam-se para regulamentar o casamento cristão de indígenas e africanos, por entendê-lo como instrumento essencial para evangelizar e incorporar esses povos à Igreja. No Brasil colonial, africanos, indígenas e seus descendentes recorriam à justiça episcopal pelo direito ao matrimônio católico, enquanto senhores de escravos opunham-se, aprovavam ou até incentivavam casamentos de seus escravizados e dependentes. Diferentes interesses os impulsionavam nas disputas sobre os casamentos, que tinham para eles significados diversos, como demonstra a autora nessa sólida e exaustiva pesquisa interdisciplinar, globalizante e comparativa.O conteúdo e a produção das inúmeras e diversificadas fontes secundárias e primárias, incluindo bulas, manuscritos, relatórios, correspondências, crônicas e textos diversos de teólogos, missionários, clérigos e leigos de diferentes instituições e temporalidades, são criteriosamente cruzados, problematizados e contextualizados do ponto de vista histórico e das discussões teológicas dos diversos momentos em que foram elaborados. Perfis e interesses de seus respectivos autores são cuidadosamente identificados na dinâmica de suas interações, trajetórias e desafios, em tempos e espaços determinados, sem descuidar das intricadas redes de relações de poder e disputas políticas, espirituais e socioeconômicas entre atores e instituições nas quatro partes do mundo já globalizado dos séculos XVI, XVII e XVIII. O olhar antropológico sobre a documentação, em grande parte produzida sob a decisiva influência das relações de alteridade entre missionários, infiéis e convertidos e/ou escravizados, revela-se essencial, sobretudo para discutir e interpretar os escritos e atuações dos jesuítas e capuchinhos franceses. Seu empenho em conseguir do papa as dispensas necessárias para realizar os casamentos dos neófitos com a aceitação deles próprios evidencia como a resistência indígena em manter suas práticas contribuiu para flexibilizar as normas católicas sobre seus casamentos.Em diálogo com bibliografia de ponta sobre o tema, Castelnau-L'Estoile descarta, definitivamente, a ideia do desinteresse da Igreja na evangelização dos subalternos e de um catolicismo de fachada por eles assumido, reiterando a ideia de entender o catolicismo colonial como instrumento de mão dupla, apropriado e ressignificado pelos novos convertidos. Além disso, demonstra a importância para a Igreja do casamento cristão dos subalternos e, sobretudo, a importância para esses últimos, apresentados, aqui, como protagonistas centrais, cujas atuações e escolhas articulam-se como variáveis relevantes para a compreensão dos processos estudados.Um dos pontos altos e inovadores do livro é a demonstração do interesse e do esforço de indígenas, africanos e seus descendentes (escravizados ou não) em recorrer à justiça episcopal para obter o direito ao casamento católico com os nubentes por eles escolhidos. Meticulosa análise qualitativa e inovadora de inúmeros processos de banho da capitania do Rio de Janeiro, entre 1680 e 1720, leva a autora a reconstituir instigantes histórias individuais sobre esses agentes, formulando e discutindo hipóteses e questões estimulantes sobre suas vivências e interações na sociedade escravista do Brasil colonial. Em interlocução com renomados especialistas sobre esses temas, ela contextualiza, cruza e problematiza o conteúdo e a construção dos registros paroquiais, explicitando o complexo funcionamento da malha eclesiástica no espaço investigado. Equívocos e imprecisões sobre classificações étnicas e jurídicas identificados nos registros e vistos como indícios de invisibilização dos indígenas reforçam o atual questionamento histórico-antropológico sobre o desaparecimento dos índios nos registros e na história do Brasil. Além de evidenciar o interesse de indígenas e escravizados nos casamentos, inclusive entre si, ela explora o recurso ao direito canônico, que, pouco trabalhado na historiografia brasileira, considera os escravos sujeitos jurídicos, permitindo-lhes acesso direto às instâncias judiciárias. Outras questões relevantes são retomadas e discutidas de forma articulada e inovadora: os possíveis interesses dos subalternos nos casamentos; suas relações afetivas e de trabalho; suas redes de relação entre si e com os demais atores de diferentes grupos sociais e étnicos; as mestiçagens, as mobilidades sociais etc.Conectando temas que vêm sendo continuamente renovados, sobretudo, no âmbito das histórias das religiões, da escravidão africana e dos povos indígenas, Un Catholicisme colonial traz contribuição essencial à historiografia e aponta novos caminhos de investigação. Além de valorizar as fontes paroquiais para o estudo de indígenas e africanos e comprovar seu protagonismo nos processos estudados, evidencia a relevância de analisá-los de forma articulada, como partícipes dos mesmos processos, práticas pouco desenvolvidas na historiografia brasileira. Ao associar catolicismo e escravidão no Brasil colonial, Castelnau-L'Estoile demonstra a ideia central que perpassa todo o texto: a articulação das “correntes da servidão e do casamento . . . na história de dois processos: a cristianização e a dominação colonial, na origem do Brasil” (p. 510).

Referência(s)