Mafunda
2021; The Feminist Press; Volume: 49; Issue: 1 Linguagem: Português
10.1353/wsq.2021.0007
ISSN1934-1520
Autores Tópico(s)Literature, Culture, and Criticism
ResumoMafunda Raquel Almeida (bio) Era eu e um teto branco nas noites sem sono, o teto era minha companhia já que era meu único momento de sossego, o momento em que eu queria carinho e atenção, mas só me restava o teto branco acima da minha cabeça. Eu tinha um homem, um marido, é, desses que esbanja amor pros outros, pra mim era pouco, toda noite que ele virava as costas e começava a roncar, eu ficava de olhos abertos olhando meu companheiro teto, e ali desenhava tudo. Primeiro ficava fazendo um trajeto pela minha vida, minha vida de menina que ia pra shows de pagodes, namorava escondido, pulava o portão de casa pra ir pra bailes, me via numa tristeza profunda sempre, de querer e não poder nem beber minha cerveja igual agora, é, eu gosto de beber, sabe? Eu sempre tive insônia, eu nem considero insônia ficar acordada de noite, a vida noturna é o que eu gosto, eu consigo fazer tudo melhor de noite, estou sempre de bom humor de noite, tudo pra mim acontece na noite, mas na minha vida corriqueira de cônjuge eu tentava acordar de manhã, era quase impossível considerando que eu dormia sempre às quatro horas. Sempre achei que em mim faltava alguma coisa, sempre que estava trocando ideias com o teto eu ouvia ao fundo as vozes de amigas, de pessoas da família que diziam ter eu a vida perfeita, mas isso pra mim era pouco, eu continuava me sentindo só, tão só que um teto branco se tornou companhia. Ficava fitando sua brancura sobre uma luz fraca de abajur, e pensando se não estava eu sendo exigente demais com a vida, se era aquilo ali e ponto, pensava se ter atenção toda noite era pedir demais, se um beijo mais ardente, um sexo mais gostoso era capricho meu, o sexo era num passe de mágica, bem bom, e quando eu pensava que ia chegar no ápice ele morria, virava pro lado e eu voltava pro teto que era o único lugar pra onde conseguia [End Page 58] olhar. É, eu ficava estática, a TV, às vezes, foi companhia, mas o teto, ah o teto, era amigo chegado. Nossa, a cerveja acabou, quero mais uma aí, amigo! Então, fico pensando que a nossa solidão é pra além de estar ou não com alguém, você vê? São cinquenta e um anos rodeada de pessoas, em casa, na rua, nunca me faltou companhia, mas eu nunca me senti acompanhada. Passo horas tentando me preencher e quando larguei do teto e fui me perceber que eu estava fraca, sem perspectiva. Foi aí que eu me engoli pra vomitar outra eu, eu não tive que pedir permissão pra ninguém, não consultei ninguém, eu fui, eu me permiti, eu me autorizei a viver pra além do teto branco, eu quis voar, quis ter dignidade pra quando fosse encarar o espelho. Já que a solidão é recorrente, não importa o que aconteça, posso estar rodeada igual aqui, nessas mesas de bar, que vou me sentir inteiramente vazia, mas quando eu me pari pro mundo de novo vi que nada dependia de ninguém, não era homem, filhos, amigos, trabalho, sonhos, era eu, eu tinha que me conhecer, me sentir, sonhar pra mim, não pra fora, pro mundo comer um pedaço e me deixar com a bandeja vazia. Foi o processo mais egoísta da minha vida, eu sempre em conflito, tentando fazer o confortável pra todo mundo, mas eu disse não, acabou, já deu. Saí de mim, tudo que decidi fazer depois desse passo foi renovador, outras amizades, outra casa, outro teto, outra eu em tudo, não queria mais me conter em mim, eu ainda estava e estou me vomitando pro mundo de volta, o desfecho dessa conversa de bar não dá em nada, tudo é uma continuidade, eu vou chegar em casa e vou continuar olhando pra um teto sem sono. A minha vontade de ser e estar só comigo é zero, tenho medo de mim, terei que...
Referência(s)