Artigo Revisado por pares

Ulisses antropófago

1999; Volume: 12; Issue: 23-24 Linguagem: Português

10.1353/ntc.1999.0015

ISSN

1940-9079

Autores

Bluma Waddington Vilar,

Tópico(s)

Cultural, Media, and Literary Studies

Resumo

ULISSES ANTROPÓFAGO _______BLUMA WADDINGTON VILAR________ Universidade do Estado do Rio de Janeiro So me intéressa o que nâo é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. A intençâo deste texto é mostrar que a idéia de antropofagia proposta por Oswald de Andrade pode oferecer uma chave interpretativa interessante para a compreensáo das estrategias e açôes do herói errante e astucioso por excelencia: o Ulisses homérico. Tentarei evidenciar a possibilidade de se caracterizar como antropofágicas a percepçao e a atitude de Ulisses, em dois dos mais conhecidos episodios da Odisséia, o do ciclope Polifemo e o das sereias, recorrendo à análise de Adorno e Horkheimer, "Ulisses ou mito e esclarecimento" {Dialética do esclarecimento, 1947), nos pontos em que ela se mostrar útil à argumentaçâo a ser desenvolvida aqui. Antes, porém, de tratar da antropofagia que seria praticada por Ulisses, convém lembrar algumas observaçôes feitas por Luiz Costa Lima no ensaio "Antropofagia e controle do imaginario" {Pensando nos trópicos, 1991), nas quais ele explicita de que modo entende o Manifesto antropófago (1928), entendimento esse que servirá de base à minha reflexäo. Costa Lima assimila o equívoco de se considerar o Manifestó "uma especie de utopia rousseauista regressiva" em funçâo de certas afirmacóes nele contidas, como a de que "nunca fomos catequizados", por exemplo: Oswald näo era a tal ponto ingenuo que acreditasse em uma entidade primitiva, estável e indomável que teimosamente teria sobrevivido a séculos de colonizaçao. Em vez de uma arqueología assim estática, com uma carnada primitiva e indelével e outra mais superficial, formada pela herança do branco, Oswald enfatiza uma força primitiva de resistencia à doutrinaçao promovida pelo colonizador. Essa capacidade de resistencia seria antes um traço cultural do que o produto de algum estoque étnico. E, por isso, identificada apenas pelo modo como opera; pelo canibalismo simbólico. Em poucas palavras, a doutrinacáo crista européia nao teria superado o poder de resistencia da sociedade colonial, que se manifestaría na manutençâo de nossa capacidade de devorar e ser alimentado pelos corpos e valores consumidos. Como sublinha o mesmo crítico, há um aproveitamento, näo um simples repudio ou uma anulaçâo desses valores. Tal aproveitamento näo elimina contudo uma dimensäo conflituosa, antes a pressupóe:©1999 NUEVO TEXTO CRITICO Vol. XII No. 23/24, Enero a Diciembre 1999 66___________________________________________BLUMA WADDINGTON VILAR (...) a negaçào do inimigo, sua condenaçâo ao esquecimento representa o avesso do que postula o Manifesto. (...) convém destacar que a antropofagia, tanto no sentido literal como no metafórico, nao recusa a existencia do confuto, senSo que implica a necessidade da hita. Recusa sim contundir o inimigo com puro ato de vingança. A antropofagia é uma experiencia cujo oposto significaria a crença em um limpo e mítico conjunto de tracos, do qual a vida presente de urn povo haveria de ser construida. De sua parte, o Manifesto se origina da busca dessa "experiencia pessoal renovada", que se fundaría na mcorporacäo da alteridade. De acordó com as metas do Manifesto, essa incorporacáo agiría ao mesmo temponosplanospessoal e social? Como anota Benedito Nunes em "Antropofagia ao alcance de todos", Oswald extraiu sua idéia de vida primitiva dos Essais de Montaigne, cujo capítulo "Des cannibales" apresenta uma descriçâo dos costumes, da organiza çâo comunitaria, dos valores e virtudes dos selvagens. O escritor privilegiou , acrescenta Nunes, a antropofagia ritual que promove a "transformacáo permanente do tabu em totem", segundo a visäo defendida por Freud em Totem e Tabu (1913), ou seja, o rito antropofagia) como forma de expiaçao do crime que teria posto fim à horda patriarcal primitiva e marcado o inicio "da organizaçâo social, das restricóes moráis e da religiäo" —o assassinato e a devoraçâo do pai tiránico pelos filhos rebelados. Nesse ato de devora- çâo, além de se identificarem ao pai, os filhos adquiririam uma parte de sua força. Isso porque a prática do canibalismo entre povos primitivos se baseia...

Referência(s)