Na Feira do Livro II; A Minha Musa; Para Agradar a Uma Sombra; Ladrões de Bicicletas; Chuva de Pedras
2020; Modern Humanities Research Association; Volume: 36; Issue: 2 Linguagem: Português
10.1353/port.2020.0035
ISSN2222-4270
AutoresJosé Miguel Silva, Richard Zenith,
Tópico(s)Linguistics and Education Research
Resumo258 José Miguel Silva Na Feira do Livro II — ‘Tem livros sobre o prazer?’ sussurra o desarmado pistoleiro do amor. Um deslize do genoma soterrou-lhe o coração. Os dentes em balanço, os olhos de través, a estopa do cabelo; sua vida é refutada pelo cânone festivo do grego to kallon. Não tem lugar no mundo dos heróis, aprendeu a soletrar na escola do revés e não há quem lhe perdoe o sofrimento, quando pulsa na pergunta entre todas indecente. A Minha Musa É mais casta do que eu e só bebe água mineral. Furtiva, insolente, caprichosa, às vezes desaparece-me de casa durante meses. Apetece-me bater-lhe. Mas talvez a culpa seja minha. Passo tanto tempo a coçar a cabeça ou no terraço a ver passar os aviões. É natural que se farte de mim, raramente estou em casa quando chega, prefiro dormir a ver televisão com ela sentada nos meus joelhos. Amiúde me pergunto se compensam os tormentos a que me força. Meteu na cabeça fazer de mim poeta, quando o que eu gostaria era de ser aviador. (Mas tenho medo 259 Translated by Richard Zenith At the Book Fair II ‘Do you have books about pleasure?’ mumbles the unarmed gunner of love. A kink in his genome had buried his heart. Teeth on edge, slanting eyes, hair like tow, his life has been refuted by the festive canon of the Greek to kallon. He has no place in the world of heroes. He learned to spell in the school of misfortune, and no one forgives him the suffering that throbs in that utterly indecent question. My Muse She’s chaste compared to me and drinks only mineral water. Furtive, cheeky and fickle, she sometimes stays away for months, and then I feel like punching her. But it’s probably my fault. I spend too much time scratching my head or watching airplanes from the balcony. Of course she gets tired of me: I’m rarely at home when she arrives, and I’d rather sleep than watch TV with her sitting on my knees. I often wonder if it’s worth going through all the torments she makes me suffer. She’s bent on turning me into a poet, when what I’d really like to be is an aviator. (But I’m afraid 260 das alturas, e ela sabe-o. Aproveita-se da minha debilidade.) Obriga-me a ficar de olhos abertos durante o sono, a estudar os caninos que a vida me mostra, o manual dos elementos, a história calamitosa dos meus erros. É preciso ter estômago para tanta solidão. Não admira que muitas vezes a traia com a Helena, com o bourbon dos amigos, com o voo violeta do jacarandá no Largo do Viriato. Mas não adianta, não sente ciúmes, ela própria me empurra para os braços do mundo. É tão exigente, tão snob, tão tinhosa. Por ela, não havia domingos nem feriados, não havia verão. Era sempre toda a vida um quarto escuro com filmes de série B e uma banda sonora de tiros, soluços, gargalhadas de teatro anatómico. Marca-me duelos — é louca! — com temíveis espadachins, à vista dos quais a minha alma treme dos pés à cabeça. Diz que me faz bem sangrar um bocado, que é minha amiga, talvez. Fria, severa, calculadora, tenta o que pode para contrariar a minha natureza ruidosa, paciente, sentimental. Diz que é uma porcaria escrever com lágrimas, recita Mallarmé, levanta-se de noite para me rasgar os poemas. Não é fácil aturá-la. Só para me irritar, muda o nome de todas as coisas: se vê um massacre chama-lhe acre de terra lavrada, vê um mendigo chama-lhe trigo, vê uma porta 261 of heights, and she knows it. She takes advantage of my weakness.) She makes me sleep with my eyes wide open, studying life’s bared teeth, the manual of the elements, the disastrous history of my mistakes. It’s hard to stomach so much solitude. Small wonder I’ve frequently cheated...
Referência(s)