
Avaliação e democracia: Repensando práticas participativas, decoloniais e culturalmente sensíveis
2023; Volume: 12; Issue: 1 Linguagem: Português
10.4322/rbaval202312003
ISSN2763-5775
AutoresRogério Renato Silva, Carolina Imura, Ana Maria Carneiro, Fernanda Teixeira,
Tópico(s)Education and Public Policy
ResumoA avaliação de polÃticas públicas e iniciativas socioambientais tem se mostrado um componente indissociável dos regimes e das instituições democráticas. Isso ocorre quando os resultados das avaliações explicitam o desempenho das ações e serviços, dão voz aos agentes vinculados à co-produção das atividades, ampliam o estoque de conhecimento necessário à boa gestão dos bens públicos, oferecem oportunidades de interrogação e de aprendizagem para as pessoas e as instituições e incrementam o controle social do Estado e seus agentes. Para corresponder a tais expectativas e agirem como força propulsora das democracias, é preciso, contudo, que as avaliações funcionem simultaneamente em dois registros: como instrumentos técnicos dedicados ao exame e à valoração dos objetos e como dispositivos polÃticos de coprodução desses objetos. Em todas as situações em que técnica e polÃtica se subjugam e/ou se divorciam, não apenas as avaliações são impedidas de realizar suas possibilidades, mas a própria democracia perde qualidade e tem seus efeitos reduzidos. Apesar de árdua, a tarefa de buscar equilÃbrio entre técnica e polÃtica nas avaliações é fundamental. Como afirmam Abramovay & Lotta (2022), âo processo polÃtico é central para uma democracia e permite (...) fornecer uma combinação equilibrada entre técnica e polÃtica.â (Abramovay & Lotta, 2022, p. 144). Para eles, âa crença cega na técnica e no mérito costuma encobrir relações de poder, acobertando escolhas polÃticasâ (Abramovay & Lotta, 2022, p. 146); e ainda: âsem passar pela democracia e pela polÃtica, não há alternativa de ruptura com o sequestro do Estado por interesses privados.â (Abramovay & Lotta, 2022, p. 146). Apontar as avaliações na direção do fortalecimento da democracia, portanto, requer que elas sejam desenhadas como arenas de diálogo plural em torno dos objetos que examinam. E é neste sentido que as éticas da participação, da decolonização e do agir culturalmente sensÃvel tornam-se signos essenciais à s avaliações contemporâneas. No contexto brasileiro, em particular, não há maneira de contornar o abismo autoritário que nos afronta sem responder a um elogiável imperativo democrático: em todas as áreas e em todos os territórios, é preciso fazer diálogos sociais que ampliem o acesso dos cidadãos aos direitos e fortaleçam seus vÃnculos com os valores e as práticas da democracia. Furtado & Campos (2008) afirmam que a âparticipação é uma condição necessária a uma polÃtica social realmente comprometida com mudanças sociaisâ (Furtado & Campos, 2008, p. 2672), o que requer dos agentes real disposição para que as avaliações enxerguem os atores que compõem a realidade, valorizem seu protagonismo como co-produtores das ações e A RBAVAL apoia os esforços relativos à visibilidade dos autores negros na produção cientÃfica. Assim, nossas publicações solicitam a autodeclaração de cor/etnia dos autores dos textos para tornar visÃvel tal informação nos artigos. Recebido: Fevereiro 28, 2023 Aceito: Fevereiro 28, 2023 *Autor correspondente: Rogério Renato Silva E-mail: rogerio@pacto.site Revista Brasileira de Avaliação, 12(1), e120323, 2023 2/4 Avaliação e democracia: Repensando práticas participativas, decoloniais e culturalmente sensÃveis manejem os processos avaliativos num fazer-junto que possibilite que setores marginalizados atuem de fato nos processos de desenho, implementação e utilização das avaliações. A participação requer um giro na perspectiva avaliativa hegemônica que, se não prossegue unicamente experimental em seus instrumentos metodológicos, o faz na sua orientação éticopolÃtica. Na razão experimental, as avaliações não podem ser fruto de construção coletiva porque são um instrumento tecnocrático cuja arquitetura admite os sujeitos apenas como fonte de dados, mas não como autores da realidade e presidentes das ações. Nas avaliações participativas, ao contrário, não cabe à tecnocracia o monopólio do método e da valoração. Os diferentes atores são vistos como essenciais para construir o conhecimento necessário para transformar as realidades; e, neste sentido, o efeito das avaliações não está separado do efeito do desenho ou da implementação das ações. Embora estas etapas de gestão sejam reconhecidas separadamente por suas intenções práticas e particularidades metodológicas, desenho, implementação e avaliação compõem uma unidade polÃtica indivisÃvel, cujos efeitos dependem, inclusive, da coerência que apresentam entre si. Como se vê, o giro ético-polÃtico necessário para que a comunidade avaliativa afirme seus compromissos com as avaliações participativas requer mais do que a disposição técnica de entrevistar sujeitos, vasculhar redes sociais ou armar grupos focais. Se a gênese do pensamento avaliativo contemporâneo localiza-se em algum ponto entre o surgimento dos Estados Nação e da Administração CientÃfica (Dubois et al., 2011), portanto, no seio da Modernidade, a atual tarefa da comunidade avaliativa é decolonizar tal pensamento e buscar uma razão pluriversal fundada na ideia de que as perspectivas dos stakeholders importam. Se o movimento decolonial, como afirma Mignolo (2014), propõe reelaborar um pensamento para além da âfantasmagórica e violenta Modernidadeâ (Mignolo, 2014, p. 9), avançar contemporaneamente nas práticas avaliativas exige a superação das violências instrumentais e interpretativas que caracterizaram as primeiras décadas do corpo avaliativo. Violências instrumentais visÃveis no conjunto de modelos, abordagens, autores e linguagens que definiram as coordenadas do pensamento e da prática; violências interpretativas visÃveis nas conclusões alcançadas pelas avaliações nesse perÃodo, cujo resumo caberia no aforismo: o objeto está aquém dos padrões de qualidade e resultados esperados pelos agentes localizados, geográfica ou ideologicamente, no norte global. Para romper com a razão avaliativa colonial, não há dúvidas de que a participação é um importante caminho tático. A estratégia, contudo, consiste primeiro em tomar consciência e, como afirmam Reis & Andrade (2018), âdemonstrar as dessemelhanças antagônicas existentes entre colonizador e colonizado, denunciando essa discrepância como projeto de domÃnio e opressão.â (Reis & Andrade, 2018, p. 3). No campo avaliativo, significa problematizar os critérios avaliativos e o modo como as avaliações serão utilizadas no jogo de governança dos objetos, nisto incluindo examinar quem compõe e quem decide. Outra estratégia consiste em tornar visÃveis os grupos que a Modernidade relegou ao papel de obstáculos em seu estreito conceito de civilização. à este apagamento de sujeitos e culturas que Quijano (1992) propõe suplantar, decolonizando saberes e práticas polÃticas. Para o autor, reformular outras propostas de conhecimento não é simplesmente deixar de reproduzir as existentes, mas desprender-se dos vÃnculos implantados pela indústria colonial em busca de liberdades para produzir e praticar o saber e o poder. Na prática avaliativa, tais afirmações trazem implicações na focalização dos estudos, tanto em termos de definir quais narrativas terão espaço nas avaliações quanto em termos de analisar a relevância e o mérito das polÃticas e programas. Decolonidade e participação, portanto, podem operar como par estratégico-tático na transformação que se espera fazer nas avaliações contemporâneas. Tomada de modo acrÃtico, como muitas vezes se vê nas formulações e técnicas participativas, não é raro que a participação se converta em nada além de um véu de ârespeito e confortoâ que reveste a carcomida face colonial. E é neste sentido que uma ética das avaliações culturalmente sensÃveis também deve ser pensada: ética de alteridade, coprodução e horizontalidade polÃtica; jamais ética de marketing e dissimulação, ou uso de roupagem nova para práticas velhas. Revista Brasileira de Avaliação, 12(1), e120323, 2023 3/4 Avaliação e democracia: Repensando práticas participativas, decoloniais e culturalmente sensÃveis A compreensão do conceito de cultura e suas implicações para os sujeitos e as organizações tem sido tema de frequente debate no campo avaliativo, como mostram diversas produções voltadas a discutir e qualificar as práticas avaliativas, incluindo o caso brasileiro (Silva et al., 2020). Sinônimo de etnicidade, nacionalidade e linguagem (Kleinman & Benson, 2006), a ideia de cultura tem sido cada vez mais percebida como um constructo integrado de crenças e comportamentos partilhados por um certo grupo, aà incluindo aspectos de gênero e de orientação sexual, religiosos, ocupacionais, habitacionais e polÃticos, entre outros. Se tais formações culturais variam entre grupos populacionais, qualquer prática que se dirige e interfere nesses grupos deveria sofrer certa regulação que a tornasse respeitosa a eles. Tal regulação, contudo, não cessa apenas com a disposição dos avaliadores e das instituições em adquirir certos conhecimentos e habilidades para se relacionar com este âoutroâ das práticas avaliativas, como se fosse, ele ou ela, um estrangeiro. O giro decolonial e a ética participativa aqui argumentados apontam que só há avaliações culturalmente sensÃveis quando as próprias estruturas que vinculam os sujeitos da avaliação são modificadas. Mais do que vazios significantes a declarar abertura para abraçar a diversidade, SenGupta et al. (2004) afirmam que âa auto-reflexão crÃtica e a reflexividade são os primeiros blocos de construção para alcançar a competência culturalâ (SenGupta et al., 2004, p. 14), pois não é apenas o contexto cultural do avaliado que precisa ser considerado, mas os valores, crenças e cultura dos avaliadores também. Para os autores, avaliadores culturalmente competentes não apenas respeitam as culturas representadas na avaliação, mas também reconhecem suas próprias suposições baseadas na cultura (SenGupta et al., 2004), o que nos parece ser outra boa prática no caminho das transformações necessárias a construir o campo avaliativo do futuro. Não há realização democrática que prescinda da participação dos cidadãos em sua produção. Não há participação plena sem desmontar as infraestruturas sociais e subjetivas que segregam sujeitos a desiguais nÃveis de civilidade e possibilidade. Não há avaliação culturalmente sensÃvel que não passe pela permanente revisão do sentido das práticas e do lugar e do papel daqueles que as realizam, financiam e utilizam. Se a demanda parece utópica, vale o alerta de Davi Kopenawa: âOs brancos não sonham tão longe como nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos.â (Kopenawa & Albert, 2015, p. 390). Ao propor diálogos e reflexões sobre participação, decolonidade e avaliações culturalmente sensÃveis, esperamos que as produções apresentadas neste e em outros volumes da Revista Brasileira de Avaliação possam ser examinadas em diálogo com os desafios do pensamento e da prática da avaliação na atualidade, com vistas a sua evolução. Esperamos que os enfoques dado a este editorial estimulem a comunidade avaliativa a dialogar e produzir na direção do compromisso expresso na polÃtica editorial desta revista: promover o uso das avaliações em temas de interesse público para contribuir para a garantia de direitos civis, polÃticos, ambientais e sociais no Brasil, o aprofundamento da democracia e o uso inteligente de recursos públicos e privados.
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