Artigo Acesso aberto Produção Nacional Revisado por pares

Educação Domiciliar no Brasil: mo(vi)mento em debate

2023; UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO; Volume: 29; Issue: 3 Linguagem: Português

10.5335/rep.v29i3.13893

ISSN

2238-0302

Autores

Camila Chiodi Agostini, Larissa Morés Rigoni,

Tópico(s)

Social and Political Issues

Resumo

Resenhar uma obra consiste em uma tarefa de duplo caminho: o primeiro indica a proposta de sintetizar e apresentar os principais conceitos do autor (es) e o segundo, talvez mais profundo, indica a imersão no conhecimento profetizado no livro, no caminho idealizado pelo (s) autor (es) e, se deixar invadir pelo novo. Não passamos incólumes na leitura de um livro: ingressamos de uma forma, saímos providos de mais saber e reenergizados. Na obra em questão, organizada pela professora titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pós doutora em Educação, Maria Celi Chaves Vasconcelos, intitulada como “Educação domiciliar no Brasil mo(vi)mento em debate”, lançado em 2021, pela Editora CRV, de Curitiba – PR, o conhecimento advém da reunião de pesquisas, planejado no âmbito do Programa de Auxílio Cientista do Nosso Estado, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A coletânea está dividida em duas partes: a primeira intitulada como ‘Tensões legais, conceituais, políticas e profissionais’ em que conta com sete capítulos, que possuem como foco a legislação e as controvérsias conceituais que envolvem a educação domiciliar, bem como as políticas e suas práticas. Na segunda parte, intitulada como ‘Tensões contextuais, institucionais, filosóficas e confessionais’ apresenta como eixo principal a discussão dos aspectos motivacionais, institucionais, filosóficos e religiosos da educação domiciliar, contando com mais sete capítulos. O principal objetivo da obra, organizada em quatorze capítulos, é trazer perspectivas plurais sobre o homeschooling, que é traduzido pelos autores como educação domiciliar, educação doméstica ou educação familiar desescolarizada. O tema, que tem retornado a cena de discussão nos últimos anos, por alterações e propostas legislativas em curso, é alvo de controvérsias e discussões, e vem ganhando notoriedade acadêmica por produções como a aqui analisada. No primeiro capítulo da primeira parte da obra, ‘Homeschooling: um desafio legal’, o professor Carlos Roberto Jamil Cury, apresenta o contexto histórico da educação domiciliar no Brasil em tempo de Pandemia do coronavírus, em que as escolas invadiram as casas, o que trouxe problemas na adaptação de um ensino em casa. Traz no decorrer do capítulo conceitos para poder apresentar melhor o homeschooling, indica num primeiro momento o que não é, trazendo o conceito de unschooling, indicando que a educação domiciliar não é a desescolarização, tradução do termo em inglês. Apresenta algumas leis sobre direitos e deveres da educação, apresentando o histórico caminho da educação em casa no Brasil, bem como a obrigatoriedade da matrícula na escola. Na conclusão, instiga o pensamento sobre a possibilidade da vida coletiva, sendo os indivíduos ao mesmo tempo iguais e diferentes, onde o caminho da vida comum parece ser o mais acertado. Sob o título ‘Homeschooling e redefinições no processo de escolarização e no trabalho docente’, o segundo capítulo, das pesquisadoras Ana Claudia Ferreira Rosa e Arlete Maria Monte de Camargo, promovem uma discussão acerca do ensino domiciliar num contexto pandêmico, indicado como de crise, o qual limita o exercício de um ensino domiciliar, e que repercute na reconfiguração do trabalho docente, das políticas educacionais além de repercussões na atualidade. O estudo de caráter emergencial, se utiliza da metodologia bibliográfica, das condições históricas e de estudos em grupo realizados no período. O texto problematiza o contexto atual pandêmico de desigualdades, que exacerbou problemas do ensino em casa, mas também foi estopim para o reforço da retórica do homeschooling. Segue com análise das condições históricas de emergência da escolarização obrigatória e da especialização do trabalho docente e suas alterações na pandemia. Analisa, na última seção, os limites da educação no lar na pandemia, frente a condições objetivas e materiais da sociedade, com os cortes limites frente a grande parte da população que implicam no exercício do direito à educação. As autoras concluem que, embora a pandemia tenha exigido medidas emergenciais, o ensino domiciliar apenas escancarou ainda mais as desigualdades sociais, que repercutem no exercício do direito à educação da maioria dos brasileiros, apresentando-se esse como um limite ao homeschooling. O terceiro capítulo, também apresenta discussão sobre o trabalho docente, cujo título é ‘Maternidade e docência no contexto da Educação Domiciliar’, escrito pelas pesquisadoras Luciane Muniz Ribeiro Barbosa e Vitória Maria Terra. O objetivo é desvendar os desafios da substituição dos docentes pelos pais para as famílias a optarem pelo homeschooling, sobretudo para as mães, que passam a ser professoras de seus filhos. Com análise bibliográfica nacional e internacional, e com a utilização de entrevistas semiestruturadas de mães estadunidenses incumbidas no homeschooling de seus filhos, elas também discutem a implicação da atribuição de professora dessas mães para a profissão docente. Após análise fundamentada das referências, com também dos relatos da entrevista, as autoras concluem que a educação domiciliar pode indicar uma ameaça à profissão docente, porque desconsidera a formação e profissionalização necessária para exercer a educação de cunho escolar. As novas tecnologias de ensino são apenas recursos pedagógicos que não dispensam a atuação docente especializada. Os ataques conservadores aos docentes não são suficientes para a defesa da educação no lar, assim como a realidade desigual do país cria grandes entraves a sua concretização. De autoria da advogada e professora Fabiana Ferreira Pimentel Kloh e do defensor público e professor Cleber Francisco Alves, o quarto capítulo ‘“Conselho Tutelar diz que aulas presenciais violem direitos das crianças”: o relativismo na obrigatoriedade da frequência à Escola e a opção pela Educação Domiciliar’. O objetivo do texto é analisar, dentro do contexto pandêmico, o afastamento das responsabilidades da escola no quesito garantia de convivência social, o que deu margem a declarações como as do Conselho Tutelar que se inserem no título, como também a relativização da regra jurídica de frequência obrigatória escolar. Os autores concluem que, diante do contexto e das mudanças aceleradas pela pandemia, a frequência escolar como forma de garantia do acesso à educação pode ser reavaliada, sendo o homeschooling uma possibilidade executável. Intitulado como ‘Reflexões acerca da Educação Domiciliar e da desescolarização a partir do cenário de pandemia’, de autoria dos pesquisadores Aline Lyra e Antônio Jorge Gonçales Soares, o quinto capítulo pondera sobre as propostas do homeschooling e do unschooling (desescolarização), surgidos com o cenário da pandemia, com base em análise da literatura sobre o tema. Com um resgate histórico e conceitual, os autores apresentam diversos escritores que já trabalharam sobre os dois conceitos, indicando que ambos apontam a existência do protagonismo do educando, considerando que o debate que surge sobre essa forma de educação se origina na forma com que a educação escolarizada é efetuada na atualidade. Sustentam, por fim, a necessidade de diálogo entre as formas de educar. Trazendo a mesma linha, o sexto capítulo aborda a diferença entre educação e escola. Apresenta como título ‘Homeschooling e Unschooling: alternativas à escolarização?’, escrito pela pesquisadora Gabriele Nigra Salgado, através de discussão teórica, advinda de tese de doutorado, como também com base em entrevista cedida por mãe optante pelo unschooling. A autora se propõe a analisar o processo de escolarização posto em debate diante do homeschooling e do unschooling. Tem também como objetivo, “apresentar os interesses, os conflitos e as contradições inerentes à emergência da instituição escolar, bem como a produção de sentidos e de significados que até hoje se colam a ela e criam associações contingentes que definem a vida das pessoas inseridas nas sociedades escolarizadas” (p. 144). Em suas conclusões, a autora sustenta a perspectiva de uma educação que não apenas efetue um processo de escolarização das crianças, mas que as eduque em seu sentido mais amplificado, sendo que para isso é necessário repensar e reinventar o tempo e o espaço escolar. Finalizando a primeira parte, é apresentado o sétimo capítulo, de autoria da pesquisadora Gabriela Freitas de Almeida, intitulado como ‘A escolarização do lar e a desescolarização da escola’ no qual, com base no materialismo histórico dialético e teoria marxista, o conceito de desescolarização de Illich é analisado como sustentáculo da proposta de educação defendida hoje no país. Outrossim, ela também pondera, de forma breve, as relações existentes entre a teoria da desescolarização e a escola do trabalho. Como forma de conclusão, podemos destacar que ela avalia que o homeschooling, enquanto desescolarização e a escola do trabalho possuem aproximações nas práticas pedagógicas, onde o conhecimento se dá no espaço social, como um espaço de aprendizado. Mas, as diferenças aparecem quando a escola defende um processo coletivo, enquanto o homeschooling transfere as questões sociais para o espaço privado, o que não beneficia as disputas e discussões sociais para as futuras gerações. Iniciando a segunda parte, temos o primeiro capítulo intitulado como ‘A Educação Domiciliar e suas motivações: elos que se desfazem e refazem’, de autoria da pesquisadora e organizadora do livro, Maria Celi Chaves Vasconcelos. A autora analisa as principais motivações para que haja uma educação domiciliar, entendida essa como a modalidade educacional que ocorre na casa dos alunos, sob responsabilidade dos pais, ainda que sua prática ainda não seja permitida, salvo autorizações legais específicas ou locais. Após a conceituação teórica, ela apresenta a análise de dados de uma pesquisa qualitativa, baseada na observação, no depoimento e em entrevistas estruturadas relacionadas ao cotidiano de duas famílias adeptas a modalidade. Com o estudo, ela afirma que fica claro que não há uma motivação que possa inserir o grupo de famílias optantes e que se delimite por questões empíricas, ideológicas ou religiosas. O modelo brasileiro parece acompanhar o modelo norte-americano, mas do qual possui apenas inspiração, se adequando a realidade local do Brasil. Os optantes, segundo, ela, não representam uma classe social específica. Por fim, considera que o que deve ser reforçado pós pandemia é a importância do cotidiano comum escolar, da interação, embora a opção do homeschooling seja dos pais, os quais devem ser instigados a pensar nessa relação família e escola. ‘Adultez e responsabilidade: reflexões sobre educação, escola e homeschooling a partir de Biesta, Levinas e Arendt’, é o tema que encabeça o segundo capítulo, escrito pelo professor Bruno Antonio Picoli. O ensaio, busca investigar qual seria a principal demanda da educação nos dias de hoje com base nos ensinamentos de Gert Biesta. A fundamentação teórica ainda contou com os escritos de Levinas e Arendt. O objetivo também se localizou em analisar a possibilidade ou impossibilidade da família, em termos educacionais, ocupar o lugar da escola. Em suas conclusões, o autor afirma que a educação ocupa papel de destaque na formação do indivíduo, tanto no pertencimento social e reconhecimento do outro como na necessidade de se viver em pluralidade. Manter as crianças em local privado é extirpar da esfera de convivência o outro plural e por isso, para ele, a educação em casa não seria educação, por privar a convivência com o diferente, negando a possibilidade do surgimento do eu ético do indivíduo. Baseando-se na Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici (2015), o terceiro capítulo apresenta o estudo realizado acerca de ‘Moderna defesa do passado, criativa defesa da tradição’, de autoria do professor Adalberto Carvalho Ribeiro. No texto, o autor apresenta bases teóricas científicas que fundamentam o pensamento dos adeptos ao homeschooling. Apresenta, ainda, uma relação de causalidade entre as concepções conservadoras às famílias homeschoolers, em que ele analisa o discurso e metodologias. Percebe-se a insegurança dos pais em socializar seus filhos com a sociedade, preferindo educá-los na família. Também afirma que o pensamento dos adeptos e defensores do homeschooling indica a percepção do mundo de forma individualista e conservadora, sendo este um público conservador-liberal, predominando o conservadorismo. O autor busca responder no decorrer do texto as questões: O que pensam os homeschoolers? Por que assim eles pensam? Quais fundamentos teóricos os influenciam? Quais significados são mais caros a eles? Conclui respondendo essas questões, e informando que pais educadores carregam sim, um conservadorismo ao pensar na formação de seus filhos, pois “conservar, para eles, é mais importante do que expandir. Limitar rede de relações sociais é mais seguro do que aumentar a rede indiscriminadamente. Preferem a dor à excitação da novidade” (p. 274). No quarto capítulo sob o título ‘“Interesses naturais” ou vantagens de classe? Desigualdade invisível e construções da “educação ideal” em famílias “homeschoolers”’, escolhido pelo pesquisador André de Holanda Padilha Vieira, apresenta a sua pesquisa realizada em 2012, com 62 famílias homeschoolers, bem como entrevistas com pais educadores. O autor analisa a condição socioeconômica das famílias e como essa reflete na forma de aprendizado dos adeptos à educação domiciliar. Para ele, são famílias, em que os pais são mais escolarizados do que a média do país, possuem renda elevada e possuem poucos filhos. Sendo assim, conseguem dirigir mais recursos para a educação dos filhos, bem como conseguem estar mais presentes no processo, constituindo-se essa uma estratégia utilizada para retirar seus filhos da escola, apresentando maiores vantagens. As famílias adotam um estilo de “cultivo orquestrado”, delimitando e controlando os espaços de socialização, bem como toda a rede de apoio necessária. O quinto capítulo é escrito pelos pesquisadores Mayara Lustosa Silva Pessoa e Alexsandro Vieira Pessoa, cujo título se apresenta como ‘Homeschooling e o debate sobre os movimentos sociais’. O conceito movimento social é apresentado de acordo com diferentes perspectivas e o relacionam com o homeschooling, com o objetivo de identificá-lo ou não como um movimento social. Ao concluir, o texto apresenta a vertente de que, embora a educação domiciliar apresenta uma grande mobilização no Brasil, tendo uma aparência de movimento social, tem suas particularidades e não pode ser confundida com os movimentos sociais tradicionais, devido aos projetos apresentados por seus adeptos envolvidos. O advogado e pesquisador Édison Prado de Andrade apresenta seu texto, no sexto capítulo, ‘A Educação Domiciliar e a Religião', e desafia-se em discutir sobre a religiosidade nas famílias adeptas ao homeschooling. Ao optar por educação em casa, os pais e o grupo de convívio, se orientam pelo viés do que acreditam e o que tem por verdade, como valores, religião, crenças, etc. Isso resulta em uma educação tradicional, forjando uma cultura moderna. As famílias, ao se oporem a educação na escola, estão optando pelos fundamentos antigos com ligação forte à religião, privando-os dos ideais naturalistas e darwinistas que estão presentes em sistema público ou privado de ensino. O último texto, o qual fecha a segunda parte da Coletânea, sendo o sétimo capítulo, ‘Evolução Biológica: crença religiosa ou patrimônio científico-cultural da humanidade?’, de autoria dos professores Nelio Bizzo, Luís Bizzo e Pedro Ramos, apresenta uma contestação acerca de um dos principais argumentos que defendem o ensino em casa. O texto, de início, pondera sobre a teoria evolutiva proposta inicialmente por Charles Darwin, realizando um contraponto com as crenças criacionistas. Ao concluir, os autores discorrem sobre a importância da liberdade acadêmica que garante o exercício da razão, e que o pensamento crítico só é possível a partir da liberdade. Citam as palavras do ministro Barroso para fechar o capítulo “[...] O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza” (p. 378). Os quatorze capítulos apresentados no decorrer da Coletânea, trazem uma temática de destaque e conseguem debater e se complementar, em alguns momentos, sobre a educação domiciliar, trazendo uma literatura profunda e atual. Com o intuito de apresentar os fundamentos e pressupostos, os autores trouxeram ricas informações que provocam questionamentos e posicionamentos sobre o homeschooling. Fica claro da leitura, ainda, que a proposta educacional se resinificou após a pandemia COVID-19 que assolou o Brasil nos anos de 2020 e 2021, embora antes mesmo desse evento, diversos Projetos de Lei foram propostos e até mesmo aprovados no país. O livro apresenta a educação na escola contrapondo-se e complementando, por vezes, com a educação no lar e, esta, por vezes, representando como a evolução futura da educação. O fato é que a temática repercute e sustenta ainda as diferentes visões de mundo, da sociedade e do ser em si que convivem no país, como também proposições de diferentes formas construção e exercício de políticas educacionais. Para além de uma composição maniqueísta, é preciso pôr em tela de discussão a proposta do homeschooling e, através de fundamentos científicos, apresentar seus prós e contras, para que se possa avaliar a sua futura efetivação, caso ocorra. Outrossim, é preciso também levar em consideração que a modalidade não existe no sistema educacional atual, o que, portanto, dificulta a verificação efetiva de como a mesma vai funcionar em um país de profundas desigualdades sociais e econômicas como o Brasil, onde o pleno acesso educacional presencial ainda é um desafio. Da mesma forma que, é preciso pensar a quem essa modalidade atende, visto que com base nas leituras, verifica-se, por exemplo, que a modalidade depende de um aparato pedagógico específico para aplicação, realidade que não parece ser passível de ser alcançada pela maioria da população brasileira. Por fim, é preciso externar que a obra em tela deu um passo substancial na apresentação de fundamentos e análises potentes para que possamos avaliar a temática. Trata-se de um início de fôlego, com aporte suficiente e instigador, para que se possa deliberar, de forma centrada, sobre o homeschooling.

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